Parte 8 - Final

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Esbaforido e sedento para por os seus planos de exorcizar o próprio filho por meios nada convencionais, Luís entrou em casa e recebeu um novo choque que quase o levou à perda total. Um corpo caído no tapete da sala. O corpo de Suzana. De um enorme ferimento em seu pescoço jorrava um sangue quase negro que se espalhava por todo o cômodo. Luís precipitou-se em direção ao corpo, mas parou assim que viu Júnior novamente sentado na poltrona a apenas um metro do cadáver. O filho apresentava um olhar assustado de incompreensão e, para o desespero de Luís, a cabeça-parasita exibia um sorriso ensanguentado com pedaços de pele marrom grudados nos lábios deformados.

Luís voltou o olhar para Suzana ali estendida e um raio de compreensão do ocorrido o atingiu com infernal violência. Arregalou os olhos e voltou-se para o demônio.

- Seu...seu...vigarista de uma figa! - cuspia as palavras - Que porra você fez aqui? Meu Deus, o que aconteceu? Meu Deus!

Ajoelhou-se e segurou os dois pés de Suzana, como em um póstumo pedido de desculpas. Pareceu recitar alguma espécie de oração e ergueu-se num sobressalto, o rosto transformado em uma horrível careta da mais pura fúria e ódio.

- Eu vou acabar com você, demônio!

- Vai, é?

- Vou! Eu sou enfermeiro há muito tempo! Sei manejar a droga de um bisturi!

- É mesmo? - caçoou a cabeça - E o que pretende fazer com um bisturi?

- Eu vou arrancar você daí, seu filho de uma puta! Eu vou arrancar você do meu filho!

Riu um riso louco e desvairado e correu para algum outro cômodo, de onde voltou com uma maleta médica em mãos.

- Essa é, sem sombra de dúvidas, - continuou a cabeça possessa - a ideia mais estúpida que eu já ouvi em toda a minha vida. E olha que eu estou nesse mundo há muito tempo. Você acha mesmo que o seu filho sobreviverá a uma cirurgia amadora feita por você?

- Eu sei o que eu faço, imbecil - disse enquanto voltava de outro cômodo com um maçarico debaixo do braço, objeto que Luís almejava usar na sutura do ferimento - Já presenciei muitas cirurgias na minha vida. É arriscado, eu sei, mas tenho que certeza que dará certo. Tenho certeza, porra!

- E posso saber como pode ter tanta certeza assim?

Luís parou o que fazia e olhou fixamente para a cabeça-parasita. Algo brilhava no fundo dos seus olhos.

- Porque Deus está comigo.

Abriu a maleta e de lá tirou uma seringa comprida. Encheu-a com um líquido transparente e aproximou-se de Júnior.

- Vai doer só um pouquinho, querido.

- Você vai matar seu filho, animal estúpido! - esbravejou a criatura do inferno.

Ignorando-a, Luís aplicou uma pequena dose de anestesia geral no filho e voltou-se para buscar o bisturi. Luís Júnior apagou no mesmo instante, mas o ser que o parasitava manteve-se em alerta. Na verdade, tornou-se mais agitado do que nunca.

- Você não entende mesmo, não é? - esbravejava - Por que você acha que a puta da sua esposa fez um pacto comigo?

Luís procurava ignorar a voz trovejante que machucava os seus ouvidos e produzia um tremor nauseante em seus órgãos internos. Preparava-se para iniciar o corte.

- Ela fez isso para o seu sucesso, imbecil! Para que você deixasse de ser o merda que é!

Luís parou por um instante com o bisturi a centímetros do pescoço do filho.

- O que você está dizendo?

- Você é mesmo muito burro! Um pacto é uma troca, ou você não sabe disso? Sua mulher ofereceu-me o que eu quisesse em troca do seu sucesso profissional! Ninguém gosta de ter um merda fracassado como você como esposo, porra! Foi tudo por você! Mas a sua estupidez está estragando a porra toda e tornando em vão a morte da sua esposa. Meu sinceros parabéns, seu idiota estúpido do caralho!

- Você...você está mentindo!

- Ora, então espere para ver! Permita que eu continue ocupando essa porra de cabeça inútil e você verá como, em poucos meses, lá estará, em todas as estradas do país, os anúncios com o slogan "Para deixar seu filho feliz, compre os doces do Luís". Você será rico, porra. Milionário, se duvidar. Eu posso te abençoar dessa forma.

Luís projetou a cena no visor da sua consciência e foi dominado por uma hesitação paralisante. A mão que segurava o bisturi tremia e seus olhos marejavam, enchendo a sua vista com uma espessa neblina que dava a tudo um aspecto fantasmagórico. Aquelas sensações não eram apenas os efeitos de sua natureza ambiciosa ante aquela oferta tentadora. Algo emanava daquele diabo perverso e o confundia. Distante, ele ouvia vozes infantis sussurrarem nos ouvidos:

- Para me deixar seu filho feliz, compre os doces do Luís!

- Mamãe, compra os doces do Luís, por favor!

- Olha pai, é a loja de doces do Luís! Compra um daqueles pirulitos deliciosos pra mim, por favor!

Juntamente com os sussurros, imagens desconexas de rios de dinheiro e entrevistas para a televisão brotavam em sua mente embriagada por algum feitiço demoníaco. Flashes de câmeras, maletas lotadas com notas de cem, mansões enormes repletas de mulheres dignas de capas da Playboy. Tudo a disposição dele. Tudo ao alcance de suas mãos. Todo o permanente fracasso a qual sua vida se reduzia desapareceria num instante. Bastava largar aquele bisturi e deixar as coisas como estavam e tudo ocorreria da forma mais natural possível.

Mas algo não estava certo. Não havia honra naquilo tudo. Não havia honra num sucesso cujo preço fora a vida do próprio filho deficiente. O amor paterno era maior do que a ganância, o desejo de vencer. Simplesmente não podia entregar Júnior, a criança que lhe impusera uma razão para viver, nas mãos de um ser tão maligno e odioso quanto aquele que o tentava seduzir. Luís sacudiu a cabeça e gritou com toda a força de suas cordas vocais:

- Não!

Dispersou um pouco da tontura e da sensação de embriaguez e tentou prosseguir com a operação. Porém ainda tremia em excesso e não conseguia enxergar com precisão. As imagens embaralhavam-se em sua mente e o senso de direção foi completamente perdido. Não tinha ideia do que era direita ou esquerda. Ainda assim, decidiu continuar. Era agora ou nunca.

Em meio aos xingamentos do demônio e á tentativas de sedução, Luís manteve-se firme e deu início à cirurgia que salvaria a vida do filho e, no final das contas, salvaria também a dele própria.

Perdido e oscilante, superou-se e, contra todas as expectativas, conseguiu cortar a cabeça com furiosa precisão. Deixou que a cabeça caísse no chão e saísse rolando pelo tapete. Jogou o bisturi longe e correu para pegar o maçarico, desesperado para suturar o ferimento o mais rápido possível, já que a criança não resistiria por muito tempo naquele estado de perda excessiva de sangue.

Acontece que, quando se virou em direção á mesa onde se encontrava o maçarico, uma risada familiar ecoou pela casa.

Luís paralisou-se. Seu corpo recusava-se a dar meia volta e encarar aquela risada vinda das reentrâncias do inferno. Mas não foi preciso.

Abaixando vagarosamente a cabeça, Luís encontrou, aos seus pés, a cabeça do próprio filho, a que funcionava em perfeitas condições, observando-o com olhos arregalados que nada viam e nada sentiam.

Atrás, a risada cessou e o demônio zombou:

- Você cortou a cabeça errada, imbecil!

FIM.

O Duas-CabeçasOnde histórias criam vida. Descubra agora