Do lado de fora da capela, Luís esperava impacientemente o término do período de confissões. Não parava de bater o pé contra o chão em um gesto de irritação e olhava de cara feia para todas as velhinhas acocoradas que passavam por ele. Cadê esse filho da..., pensava quando o padre da paróquia abriu as portas da capela e saiu enquanto retirava a estola do pescoço. Luís aproximou-se o mais rápido que pôde antes que algum marido infiel sentindo-se culpado viesse encher o saco.
- Padre, preciso trocar uma palavrinha com o senhor - disse, puxando o homem baixinho e barrigudo pela manga da camisa.
- Tudo bem, meu filho. - respondeu o padre com voz de mulher - Mas de forma alguma é necessário que me puxe dessa forma. Apenas diga o que tem a dizer.
Luís irritou-se ainda mais com a atitude do sacerdote, mas não tinha nem tempo e nem paciência para demonstrar o sentimento,
- Certo, desculpe. Acontece que não seria bom para a minha imagem caso outro alguém além do senhor ouvisse o que vou lhe dizer.
- Pois diga logo. Estou muito ocupado com as preparações para a Semana Santa e, além do mais, por que não utilizou o período das confissões para conversar comigo?
- Não quero confessar-lhe nada, padre. Preciso apenas de um conselho.
O homenzinho gordo se derretia em suor e não parava de passar uma toalha bordada pelo rosto e pescoço ensopados.
- Então diga, meu filho, então diga. Mas seja breve, por favor.
- Eu serei. Mas antes aviso que o conselho que lhe peço tem a ver com algo muito...curioso.
- Olhe aqui, eu exerço o sacerdócio há 20 anos. Não há nada de curioso nesse mundo que eu não tenha ouvido da boca das pessoas que veem até mim pedir ajuda.
- Ótimo. - respondeu Luís e, ao invés de explicar o pedido, manteve-se calado e de olhos no chão,
- Pois diga logo, rapaz! - irritou-se o padre.
- Certo. O que o senhor faria caso o demônio em pessoa possuísse uma determinada parte do corpo de um conhecido seu? Mas apenas uma certa parte, entende? Não o corpo todo, apenas um pé, um braço, uma cabeça...
O pequeno padre fixou o olhar no rosto de Luís por demorados dois minutos. De repente, soltou uma risada engasgada e típica de homens que riem daquela forma apenas uma vez na vida e outra na morte. O riso ecoou por toda a igreja e não foram poucas as pessoas que pararam para olhar a curiosa cena. Após certo tempo, o homem conseguiu recuperar a compostura.
- Bem que eu desconfiei que o senhor era algum tipo de humorista. As suas feições engraçadas não deixam dúvidas. Muito bom, muito bom mesmo.
- Eu não estou brincando, senhor padre. Não brincaria dessa forma com o senhor. - disse Luís, avermelhando-se de raiva.
- Tudo bem, tudo bem - anuiu o padre, ainda sorrindo - Tudo muito sério, de fato. Então vejamos...como eu responderia essa pergunta seriamente?
O padre pensou um pouco e deu a impressão de ter tido a mais brilhante das ideias.
- O senhor, por acaso, já assistiu algum filme ou seriado com a temática zumbi?
- O quê?
- Sim, zumbis.
- Acredito que sim, mas que porra...desculpe, o que isso tem a ver com o assunto, padre?
- Bem, então o senhor já deve ter visto, em um desses filmes e séries, que a única forma de deter a proliferação do vírus pelo corpo de uma pessoa contaminada é decepando, o mais rápido possível, a parte do corpo que recebeu a mordida do zumbi. Dessa forma, o vírus é impedido de alcançar as demais áreas do corpo. Faça o mesmo com o seu conhecido, oras!
O padre riu escandalosamente, deu um forte e brincalhão tapa nas costas de Luís e saiu andando como se fosse o sujeito mais divertido que já pisou na face da Terra.
No primeiro momento, Luís segurou-se para não correr atrás e agredir o padre que tratara-o como uma piada. Mas depois de pensar um pouco durante o caminho para casa, Luís sorriu consigo mesmo e agradeceu silenciosamente o sacerdote engraçadinho pela ideia genial.
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O Duas-Cabeças
HorrorO filho de Luís nasce com uma rara deformidade e tudo o que parecia estranho torna-se ainda pior quando a criança completa o seu primeiro ano de idade.