Luís não precisou pensar muito para logo se ver obrigado a descer ao porão para remexer naquilo que a esposa tinha de mais confidencial. O baú. O misterioso baú. Em cinco anos de casamento, Luís nunca chegou nem perto de descobrir o que a mulher guardava ali. Na verdade, ele pouco se importava. Não fazia questão de conhecer todos os detalhes da vida de Cintia assim como não gostaria que ela soubesse de todos os detalhes de sua própria vida. Contanto que ela não escondesse um amante mais feio do que ele dentro da porcaria do baú, estava tudo bem.
Se essa indiferença em relação ao baú já era grande enquanto Cintia era viva, após a sua morte ela apenas se acentuou. Luís não sabia onde estavam as chaves e não se deu o trabalho de procurar. Sendo assim, levou o baú para o porão e lá o deixou, entregue às traças e cupins e em meio a todo o tipo de bugiganga velha e inútil.
Porém agora, como era de se esperar, o baú não parecia tão desinteressante assim. O diabo - ou o seu impostor - afirmou que, naquele baú, Luís encontraria a resposta para as suas perguntas.
Em poucos minutos, lá estava Luís: no porão, de frente para o baú, com uma marreta na mão, pronto para a ação.
Hesitou por um momento. Não estaria profanando a alma da própria esposa? Ela mantinha aquele segredo guardado a sete chaves enquanto viva. Por que sua opinião teria mudado depois de morta? Iria mesmo se aproveitar da condição de morte de Cintia para remexer em seus pertences apenas porque o diabo - o mais mentiroso e manipulador dos seres - havia dito que isso lhe seria útil?
- Foda-se - disse ele.
Dois golpes rápidos e a parte de cima do baú quebrou-se por inteira. Automaticamente, um odor pútrido encher o ar e jogou Luís dois passou para trás. Ele tentou resistir, mas as náuseas o venceram e todo o seu almoço e café da manhã foram parar no chão poeirento do porão. Tampou o nariz com a mão e a camisa, fazendo o máximo de pressão possível para que nenhuma partícula daquele ar podre adentrasse em suas narinas e contaminasse todo o seu organismo. Lutando contra o fedor, aproximou-se engatinhando do baú agora aberto.
Uma breve olhadinha e já foi o suficiente para um novo jorro de vômito subir-lhe a garganta. Dentro do baú, dois filhotes de gato preto jaziam mortos, apodrecidos, com inúmeros ossos à mostra, jogados um sobre o outro, enquanto ao lado um grosso livro de capa grossa e negra parecia irradiar os horrores de seu conteúdo. Na capa, em letras vermelhas e garrafais, o título Bíblia Satânica se realçava em alto relevo. Mais no canto do baú, um exemplar intitulado Como realizar um pacto satânico fez Luís arregalar os olhos e sair correndo como se tivesse uma legião de demônios no seu encalço.
Subiu as escadas tropeçando nas próprias pernas e continuou a correria em direção ao quarto do Júnior. Chegou lá e não pensou duas vezes antes de por as mãos dentro do berço onde o filho dormia e segurar a cabeça-parasita pelo seu lado correspondente do pescoço. Inundado por um instinto furioso inédito em sua pacata vida, começou a apertar o frágil pescocinho e balançar a criança de um lado para o outro.
- Que merda era aquela?! Vamos, apareça! Me explica! O que você fez com a minha esposa! O que você a fez fazer, seu demônio maldito!
Naturalmente, Júnior despertara e dera início a um choro intenso e sufocado. Luís ignorou.
- Vamos, porra! Cadê você, desgraçado? Porco imundo! Destruidor de lares! Por que você tinha que se meter com a minha esposa, ein?!
Em meio a um surto daquelas proporções, não tinha como Luís perceber a figura estacada à porta do quarto. A babá de Júnior, a mesma que se divertia no banheiro pensando no tal Jovenal, temia estar presenciando o assassinato de uma criança, mas temia ainda mais ser demitida do emprego que dava sustendo às suas filhas. Por isso, interrompeu a cena brutal com desproporcionada educação, como uma secretária que interrompe o horário de almoço do chefe.
- Senhor...
Luís gritou de susto e deixou Júnior cair dentro do berço. Com as cordas vocais agora desobstruídas, o bebê chorava mais alto do que nunca.
- Ah, Suzana...Oi. - disse Luís, contorcendo-se para soar natural.
- É... - respondeu a diarista - Eu cheguei e entrei com a minha própria chave. Espero que não se importe.
- Imagina...fez muito bem em entrar.
Enquanto os dois adultos se entreolhavam, Júnior se esguelhava de tanto chorar. Suzana olhou como quem não quer nada para o berço e perguntou:
- O Júnior está bem?
- Ah, sim, claro, muito bem. E olha...eu já mesmo estava de saída. Pode tomar conta dele pra mim, certo?
- Claro, com todo o prazer.
- Obrigado, Suzana. - agradeceu Luís enquanto se esforçava para sorrir e saía sorrateiramente do quarto e da casa.
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O Duas-Cabeças
HorrorO filho de Luís nasce com uma rara deformidade e tudo o que parecia estranho torna-se ainda pior quando a criança completa o seu primeiro ano de idade.