O Duas-Cabeças

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A pressa em seus passos refletia dois fatores que lhe atormentavam em iguais proporções: o fato de odiar expor a sua ridícula aparência em público e o fato de o seu filho estar prestes a nascer. O primeiro se justificava pelas características nada agradáveis de sua anatomia, como nariz grande demais, orelhas grandes demais, olhos fundos demais e músculos pequenos demais. Já o segundo se justificava pela assombrosa perspectiva de que sua vida estaria fadada à mediocridade intransponível assim que a maldita criaturinha violasse sua esposa de dentro para fora e agraciasse o mundo com suas fantásticas habilidades de chorar, gritar e defecar.

Ele não se imaginava amando alguém que nascera apenas para sugar sua energia e seu dinheiro até que só lhe restasse poeira na alma e nos bolsos. Afinal de contas, era exatamente isso que a sua esposa fazia com ferrenha dedicação. E ele sonhava acordado com o dia em que ela o abandonaria para viver com um dos alunos cabeludos da faculdade de publicidade em que estudava - faculdade paga com o dinheiro encharcado de suor de Luís, diga-se de passagem. Casou-se com Cintia porque ela fora a primeira e única mulher a lhe dirigir uma dose de atenção suficiente para fazer um cachorro abandonado se sentir amado. Ela sonhava em ter uma ninhada de filhos, mas pelo visto nem os espermatozoides de Luís conseguiam ser bem-sucedidos. Após anos e mais anos e incontáveis tentativas, finalmente Luís passaria em diante os seus malditos genes.

Mas durante a longa caminhada em direção ao hospital em que Cintia estava parindo naquele exato instante, os únicos pensamentos que borbulhavam na mente de Luís eram as probabilidades de a criança nascer morta ou morrer durante o parto. O nascimento daquela criança seria um golpe de foice na esperança de mudança. Um golpe de foice no sonho de Luís de um dia abandonar o emprego de enfermeiro no hospital municipal e abrir uma grande empresa especializada na produção de doces e biscoitos. Já até imaginava o slogan "Para deixar seu filho feliz, compre os doces do Luís" estampado em centenas de outdoors em centenas de estradas ao longo do país. Mas tudo isso seria em breve ceifado pelo choro de um bebê.

As possibilidades de morte infantil eram mínimas, concluiu ele. A mãe era saudável e a gravidez ocorreu serena e sem complicações. Só lhe restava rezar para que a criança escorregasse das mãos do médico e partisse o crânio no chão, porém as chances disso acontecer eram ainda menores.

No hospital, a serenidade no olhar do médico que veio ao encontro de Luís contrastava perfeitamente com o teor de suas notícias. Suas feições eram uma garoa que abaixa a poeira e alimenta as plantas, suas notícias eram um furacão que arranca árvores de suas raízes e demole construções.

- A criança nasceu, senhor. Porém algumas complicações no parto provocaram a morte da mãe.

Luís empalideceu. E quem cuidará daquela peste agora?, pensou ele.

- A criança está bem? - perguntou ele.

- Não acredito que bem seja a palavra mais adequada, senhor. Ela está viva.

- O que quer dizer com isso?

- Seu filho nasceu com uma raríssima condição chamada craniopagus parasiticus. Isso significa que ele nasceu com uma segunda cabeça parasita atrelada ao seu pescoço. A cabeça advém de seu gêmeo, que por algum motivo desconhecido não se desenvolveu adequadamente e deu origem a essa anomalia. Uma cirurgia nesse caso seria de um risco tremendo e não a recomendamos de forma alguma. Só podemos lamentar, senhor.

A imagem de um bebê-monstro de duas cabeças saindo do ventre de Cintia veio à mente de Luís e este esteve a ponto de vomitar em cima do médico. Ele engoliu o vômito e perguntou:

- Ele sobreviverá?

- Por agora, sim. Porém as chances de ele ultrapassar os cinco anos de idade são mais do que ínfimas, senhor. E, convenhamos, talvez isso seja o melhor para ele e para a sua família. Desculpe a sinceridade.

Durante o longo silêncio que se seguiu, Luís refletiu acerca da curiosa linha do tempo que sua vida percorria. Ela acontecia de acordo com uma fórmula universal e imutável: quanto mais o tempo passava, mais desgraçada se tornava a sua existência. O ritmo das coisas parecia ter como único objetivo a sua infelicidade. Mas aquilo ali era demais, não? Uma criança de duas cabeças? Quais as probabilidades disso acontecer? Uma em cem milhões? Uma em um bilhão? Por que tamanha desgraça haveria de acontecer logo com ele, cuja vida não era nada mais do que uma coleção de desgraças? Talvez desgraças atraiam desgraças, concluiu ele.

- Deseja ver o seu filho, senhor?

Não! Nunca! Mate essa criança! Essa aberração! Jamais quero ver algo parecido!

- Desejo, doutor.

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