Parte 4

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Luís largou o filho no chão como um monte de trapos e correu para o quarto em meio a gritinhos agudos e efeminados.

Trancado no quarto, agachado num canto com os braços em volta dos joelhos, Luís sentiu a evolução em sua personalidade e em seu espírito que lhe havia ocorrido durante esse primeiro ano como pai retroceder até o ponto da inexistência. Sentia-se novamente imerso em insegurança e em desprezo à própria condição. A cabeça morta que parasitava o seu filho aparentemente assumira vida própria, e tal acontecimento caiu como uma bigorna de proporções gigantescas na cabeça do renovado Luís, cuja renovação foi esmagada até fundir-se com o nada. Luís tremia como uma criança com medo do monstro no armário, e saber que, naquele caso, o monstro era o seu próprio filho o fazia tremer ainda mais.

Mas ainda havia uma esperança. Na verdade, era mais do que uma esperança. Em certo momento, tornou-se quase uma certeza. O dia tinha sido cansativo para Luís. Brincava com o filho desde o início da tarde, até ser interrompido pelas habilidades oratórias do irmão mal-nascido do filho. Enquanto tremia e chorava baixinho no quarto escuro, se deu conta de que estava com o corpo e a mente em ponto de colapso. Praticava exercícios físicos uma vez na vida e outra na morte, por isso não estava acostumado com tamanha carga de movimento e gasto de energia. Afinal, passar o dia correndo atrás de um moleque com energia suficiente para iluminar uma grande metrópole não era uma tarefa das mais ociosas. E aí residia o seu pingo de esperança. O gasto de energia sem reposição - comera apenas alguns salgadinhos ao longo do dia - tornou a sua mente um ambiente frágil e suscetível a falhas, como alucinações visuais e auditivas. Pronto! É isso! Com certeza é isso! Estava morto de cansaço e seu cérebro, puto da vida por ter que esperar tanto pelo merecido descanso, decidira pregar uma peça infantil no otário ali agachado, se mijando de medo. Até acharia graça disso mais tarde, há-há-há.

Com essa teoria lógica e racional em mente, controlou os tremores e se levantou num pulo, estufando o peito e fazendo a pose adequada do homem corajoso que ele, Deus e o mundo sabiam que não era.

Assim que se levantou, um som familiar despertou outra certeza em sua mente. O choro de Júnior chegou-lhe aos ouvidos e com ele a lembrança de como jogara o filho no chão ao ver a desfigurada e pegajosa boca que nunca se abria se abrir e dela sair a palavra papai em um aterrorizante tom gutural. Como uma pilha de trapos, pensou ele. E imaginou o querido Júnior Duas-Cabeças estatelado no chão em uma poça de sangue e ranço verde.

Naquele momento, a preocupação paterna nocauteou o medo e o fez correr até a porta em três grandes passos. Estava escuro como uma caverna assim que as pilhas da lanterna acabam e teve alguma dificuldade em encontrar a fechadura, girar a chave e destrancar a porta, mas após um minuto pautado pelo cada vez mais alto choro de Júnior ele conseguiu fazer tudo isso e correr atabalhoadamente até a sala onde o bebê se encontrava.

Não era em uma poça de sangue e ranço, e sim no tapete, mas ainda assim lá estava o Duas-Cabeças estatelado no chão. Seus braços pendiam para o alto e suas pernas pareciam pedalar uma bicicleta imaginária. A semelhança do filho com um besouro caído de costas tentando se reerguer passou pela cabeça de Luís, mas ele dispersou o pensamento antes que pudesse externá-lo com uma gargalhada inadequada.

Até onde podia ver, o filho estava bem. Não tinha galos na cabeça e nem marcas roxas pelo corpo e - graças ao bondoso Rei do Universo Nosso Senhor Jesus Cristinho - a cabeça-parasita parecia morta como pareceu durante a maior parte do tempo desde que viera ao mundo como uma cortesia de Deus a Luís pelos serviços prestados.

Como tudo parecia em paz e em harmonia, Luís ignorou os resquícios de medo que ainda lhe estreitavam orifício anal e segurou Júnior nos braços. A criança interrompeu o choro instantaneamente. Luís sentiu-se mais amado do que nunca.

- Você me ama, não ama, filhão? - disse baixinho.

Atreveu-se a beijar levemente a testa do filho, mesmo se aproximando além do limite considerado seguro da cabeça-parasita.

Nesse momento, um bafo quente berrou-lhe nos ouvidos:

- Te amo porra nenhuma, eu tô é com fome!

Em um gesto impulsivo, Luís atirou a criança de volta ao chão, como se de repente tivesse se dado conta de que estava segurando nos braços uma enorme batata fervente e não o próprio filho. Automaticamente, Júnior deu início a uma nova e estrondosa sessão de choro, mas esse era o menor dos problemas naquele momento, porque a outra cabeça, a que não deveria falar, a que não deveria chorar, a que não deveria mexer a porra de um músculo, olhava para Luís com olhos vermelhos que não deveriam se abrir. O olhar irradiava uma fúria que Luís podia sentir em sua pele cujos pelos se eriçaram em um harmonioso movimento e em seus próprios olhos, que começaram a arder e lacrimejar, como no dia em que uma moça na esquina escura de sua casa o confundiu com um tarado e esvaziou metade de uma latinha de spray de pimenta em seu rosto. Júnior também parecia sentir aquele poder emanar de seu inseparável amiguinho atrofiado, e externava essa sensação em berros agudos
capazes de colocar Steven Tyler e Rob Halford no chinelo.

Luís encontrava-se em um estado de transe provocado pela incompreensão acerca do que acontecia ao redor. Sua mente recusava-se a admitir que aquilo estava de fato acontecendo e por isso recolhia-se em um mundo interior onde crianças não nasciam com duas cabeças e onde membros-parasitas não ganhavam vida de uma hora para outra. Nesse mundo, Luís vendia doces e ensinava o ofício de empresário ao seu filho belo, saudável e normal. Ali era quentinho e confortável, ali não havia o que temer. Luís permaneceu no País das Maravilhas enquanto era fitado por aquele olhar maligno, mas logo retornou à realidade quando aquela voz ainda mais maligna do que o olhar deu as caras.

- Ei, você ai. É, você mesmo, seu magrelo. Será que não dá pra fazer essa porra desse moleque calar a boca e parar de berrar no meu ouvido?

O choque causado pelo retorno ao mundo real foi intenso demais. A discrepância entre a vida imaginada usada como refúgio e a vida como ela realmente é, livre de máscaras e distorções, era tão grande quanto a diferença entre o preto e o branco. Tal discrepância provocou um curto-circuito no sistema e o apagão foi inevitável.

A inconsciência veio para salvar a pátria e impedir que maiores estragos fossem feitos.

O Duas-CabeçasOnde histórias criam vida. Descubra agora