–Aqui não é o Serengeti, Madge. Pode parar de caçar.
Madge deu uma piscadinha e deu de ombros, fazendo beicinho como uma menina inocente que é pega com a mão ainda enfiada no pote de biscoitos.
– Não faço ideia do que você está falando – ela respondeu, batendo o quadril no de Jocelyn enquanto as duas organizavam em ordem alfabética as fichas do balcão da enfermagem.
Era um trabalho monótono, mas essencial para que as tarefas fossem realizadas de forma eficiente.
– Primeiro Tanner e agora… – Jocelyn tentou lembrar do nome do jovem, e ficou vermelha.
Seu raciocínio era afiado, mas ela não tinha boa memória para nomes e rostos. Ele era bonito, isso era óbvio, e tinha se afastado do balcão da enfermagem lançando olhares acalentados para Madge.
– Ah, é David – sussurrou Madge. – É só um amigo, juro para você.
Jocelyn fez uma pausa e inclinou a cabeça para o lado. Mais uma vez, seu subconsciente veio à tona, soprando a palavra que a perseguira desde o porão, passando por seu turno até o momento em que foi para a cama naquela noite. Ela começou a recitá-la em pensamento, para não se esquecer.
– Olha só, sei que vai parecer estranho, mas você ainda fala com aquele cara com quem saía lá em Chicago? Ele era hispânico ou coisa do tipo, certo? – perguntou Jocelyn.
– Porto-riquenho – informou Madge, um tanto incomodada.
– Vocês dois ainda conversam?
– Não, minha nossa – respondeu Madge, com uma risadinha. – De onde veio essa ideia? Não penso mais no Armando há meses.
Jocelyn encolheu os ombros, cutucando as unhas.
– Só pensei que, de repente, você poderia perguntar uma coisa para ele por mim. Tem uma palavra em espanhol que eu quero saber o que significa. Pelo menos acho que é em espanhol…
– Ah. Bom, isso não é problema. Eu aprendi um monte de coisas convivendo com ele – respondeu Madge, com um sorriso. Ela arrumou uma pilha de pastas sobre o balcão. – É um ótimo idioma para a arte da sedução.
Jocelyn terminou de pôr sua parte das fichas em ordem alfabética, e seus olhos procuraram de forma involuntária o nome de Lucy. Não encontrou nada ali; talvez as informações sobre a menina estivessem na pilha de Madge.
– Não é nada disso. É que eu ouvi uma palavra ontem e não consegui entender o que era. Parecia uma coisa tipo carne… carne-zero… carnessara? Nossa, eu sou péssima nisso.
– Eca, espero que não tenha sido ninguém sugerindo nada na cama – provocou Madge. Ela bateu o quadril no de Jocelyn outra vez. – Carnicero. Significa açougueiro. Você não injetou nada que não deveria na veia, né?
Jocelyn até se esqueceu de responder. Açougueiro. Açougueiro. E Lucy começou a gritar isso imediatamente depois que o diretor Crawford disse seu nome… Jocelyn sentiu um mal-estar repentino. Madge já tinha sido chamada à sala do diretor e aceitado participar do “projeto” sem questionamentos. Em que diabos elas estavam se metendo? Ela sabia que era tarde demais para ir embora, porque caso fizesse isso passaria o resto da vida pensando no que aconteceria com Lucy. Se a menina iria melhorar, ou se o diretor a manteria naquela cela úmida no frio e no escuro até definhar e morrer.
– Oi? Jocelyn? O que tinha no sanduíche de atum do almoço? Minha nossa, eu sabia que tinha alguma coisa errada. O meu estava com gosto de peixe. Quer dizer, de peixe estragado, não de atum. Você precisa ir ao banheiro?
Jocelyn sacudiu a cabeça, sentindo a boca seca e amarga.
– Não. É que… Bom, talvez eu precise me refrescar um pouco.
– Eu avisei, Joss. Sanduíche de atum de refeitório é perigo na certa. Acabei de comprar estes sapatos, e você não vai sujá-los com nenhuma coisa nojenta.
A água fresca contra a pele pareceu um tapa na cara da fria realidade. Embora a tivesse tirado de seu atordoamento momentâneo, não mudou em nada o rosto que a encarava do espelho, quase irreconhecível. Dois dias de pouco sono e muito estresse deixaram seus cabelos ruivos opacos e sem vida. A pele sob seus olhos estava fina e inchada, com as veias visíveis sob o aspecto pálido.
Jocelyn beliscou as bochechas, puxando a pele do rosto até sentir dor. Não foi o sanduíche de atum que a fez passar mal, ela sabia, fazia tempo que mal tocava na comida. Ela passou as mãos pelo jaleco branco e frio, suspirando. Aquilo precisava mudar.
Afastando-se da pia, ela permitiu que uma ideia surgisse e ganhasse forma em sua cabeça. Era um risco, claro, talvez até uma estupidez, mas se recusava a abandonar as esperanças. Ela concordara em ajudar o diretor Crawford, mas isso não significava que não pudesse testar seus próprios métodos heterodoxos.
Jocelyn saiu do banheiro e voltou ao corredor, passando por Tanner no caminho. Isso a fez mudar um pouco de ideia, mas para melhor. Ela deteve o passo sobre os saltos baixos e se virou, segurando-o pelo cotovelo.
Ele estava verificando a lista de quartos que precisavam ser arejados e limpos, e se virou imediatamente para ela quando sentiu seu toque.
– Ei. Opa. Precisa de alguma coisa?
Jocelyn fez que sim com a cabeça, lançando uma rápida olhada para o corredor para se certificar de que não estava sendo observada. Não havia nada além dos murmúrios dos pacientes no corredor à esquerda, e os assobios distraídos de Madge no balcão das enfermeiras à direita.
– Você tem acesso às cadeiras de rodas?
– Eu… acho que tenho, sim. Por que a pergunta? – ele a observou por cima dos óculos de aros grossos, entortando os lábios para o lado.
– Você conseguiria uma para mim sem que eu precisasse explicar agora?
A pergunta o fez parar por um instante.
– É para a Madge também – ela contou.
Isso pareceu convencê-lo.
– Tudo bem. Tudo bem, claro, por que não? Você precisa agora mesmo? – ele perguntou, baixando a prancheta.
– Vamos nos encontrar no alto das escadas no fim do corredor, na escadaria que leva ao porão. Nós voltamos logo, eu prometo!
Jocelyn se afastou olhando ao redor, à procura da enfermeira Kramer ou de algum médico da equipe. E em especial do diretor Crawford. Ela enfiou a cabeça para dentro do balcão da enfermagem, e encontrou a amiga assobiando uma versão própria de uma canção da parada de sucessos.
– Ei! Tive uma ideia. Vem comigo…
– Aonde nós vamos? – perguntou Madge, mas estava claramente disposta a colaborar, com os cachos loiros balançando enquanto corria atrás de Jocelyn pelo saguão e pelo corredor.
Jocelyn levou o indicador à boca, passando na ponta dos pés na frente da sala do diretor Crawford. A silhueta dele era visível, andando de um lado para o outro lá dentro. Ela segurou Madge pelo pulso e passou com cautela, abrindo a porta para o porão sem fazer barulho e descendo com pressa o primeiro lance de degraus.
– Argh. Crawford me levou lá embaixo hoje de manhã – murmurou Madge, pondo a língua para fora. – Que nojo.
– Ele levou você para ver a Lucy? – ela indagou.
– Quê? Não. Quem é essa? Ele me levou para ver um paciente chamado Dennis. Ficou falando sobre as Montanhas Brancas. “As Montanhas Brancas, tão lindas, tão tranquilas. As Montanhas Brancas, é tudo tão lindo nas Montanhas Brancas.” Como assim, o que isso quer dizer?
– Ele era violento? – questionou Jocelyn, olhando para trás quando chegaram a um patamar para continuar a descida.
– Não que eu tenha visto, mas o Crawford não me deixou chegar muito perto.
Elas chegaram ao porão, e o ar frio e úmido as atingiu, vindo do corredor dos pacientes. Era como uma espécie de aviso. Mas Jocelyn não ia parar. Ela seguiu em frente, puxando Madge pelo pulso.
– Você viu a ficha dele? O histórico? A medicação?
– Não, nada disso – admitiu Madge, com um suspiro. – Sinceramente, Joss, o único motivo para eu ter concordado com esse “projeto” foi você.
– Eu também não vi o da Lucy.
– Não viu o que dela? – perguntou Madge, hesitando diante da entrada arqueada do corredor.
– O histórico dela. Com os procedimentos e a medicação. Nada. Isso está me dando calafrios, Madge. Por que ele não quis mostrar? Está escondendo alguma coisa.
– Uma hora ele vai ter que mostrar, não?
Jocelyn não tinha uma resposta para isso. Os mesmos auxiliares que vira da outra vez patrulhavam o corredor, sem demonstrar muito interesse nas duas. Jocelyn tinha inventado a mentira de improviso, torcendo para que não parecesse absurda demais. O auxiliar mais próximo, um homem alto e magro de cabelos grisalhos e queixo para dentro, as deteve alguns passos depois da entrada.
E se apenas o diretor Crawford tivesse as chaves dos quartos dos pacientes? E se os auxiliares estivessem lá só para manter os curiosos como ela à distância? Era preciso no mínimo tentar, ela se deu conta, imitando um dos sorrisos mais radiantes de Madge.
– O diretor Crawford mandou buscar a Lucy. Ele quer examiná-la na sala doze.
O homem estreitou os olhos miúdos, que se acenderam.
– Eu não fui informado disso.
– Foi coisa de última hora… um ajuste na agenda dele. Uma família cancelou a visita – Jocelyn mentiu descaradamente, cutucando Madge nas costelas.
– Sim. Visita – gaguejou Madge. – Cancelaram. Muito triste.
Pelo visto Madge era pior mentirosa do que ela, como se isso fosse possível.
– Vai querer que ele fique esperando? – pressionou Jocelyn, franzindo a testa. – Eu não faria isso se fosse você.
O auxiliar franziu o nariz e deu uma boa encarada em cada uma antes de se virar e sair pisando duro até a cela de Lucy. Jocelyn fechou os olhos com força, aliviada; tinha sido por pouco, e ela não achava que a sorte fosse durar muito tempo. Crawford ficaria sabendo, e só restava rezar para que ele fosse leniente quando descobrisse.
Ou você vai ser demitida. Certo? Isso é a pior coisa que ele poderia fazer?
– Ainda bem que, hã, nós não vamos deixar o diretor esperando – disse Madge, tentando usar uma voz séria de enfermeira que provocou uma risadinha em Jocelyn.
– Eu já ouvi, moça. Não tenho como ir mais rápido que isso – resmungou o auxiliar, sacando um molho de chaves do bolso e testando uma a uma. – Puxa.
Não era rápido o bastante para Jocelyn, que não parava de olhar para trás para se certificar de que Crawford não estava lá, fungando no cangote das duas. Os demais auxiliares as observavam, curiosos, e os nervos de Jocelyn voltaram a se exaltar. Por que eles estavam olhando daquele jeito? E por que aquele idiota não encontrava logo a chave certa?
Seu pulso se acelerou ainda mais quando ele destrancou a cela de Lucy e abriu a porta. Aquela era a parte do plano em que Jocelyn não queria pensar. E se Lucy resistisse demais? E se não conseguisse tirá-la da cela sem outro surto?
Mas ela não deixaria que o auxiliar notasse sua preocupação. Foi correndo para a porta, com Madge logo atrás, e diminuiu o passo quando viu Lucy parada no meio da cela, com os olhos arregalados em alerta, como se estivesse à espera delas.
– Oi de novo, Lucy – disse Jocelyn, baixinho. – Vim aqui para a levar lá para cima, certo? Você vem conosco?
Para sua surpresa, Lucy deu um pulo para a frente, praticamente correndo para fora da cela. No caminho, pegou Jocelyn e Madge pelas mãos, com um aperto bem forte para seu tamanho e suas condições.
– Isso foi bem fácil – murmurou Madge, olhando para trás uma vez, enquanto voltavam pelo corredor.
– Você ia querer ficar naquela cela? – sussurrou Jocelyn em resposta. – Ela deve estar desesperada por um pouco de ar fresco.
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