Oque ela havia visto? E, acima de tudo, o que faria a respeito?
Chegou a pensar que poderia largar aquele emprego, embarcar num ônibus e ir para outro lugar, qualquer lugar. Mas isso significaria deixar todas aquelas pessoas para trás, e seus pedidos de ajuda a atormentariam pelo resto da vida – sem contar o fato de que Madge ficaria arrasada. A culpa a consumiria por dentro. Jocelyn estava lá para ser uma enfermeira. Para ajudar.
E sabia exatamente o que fazer para esclarecer as coisas.
Às vezes a melhor atitude era a mais simples. A medicina era uma ciência nobre e sem mistérios. Era isso que ela mais apreciava em sua prática. O objetivo era bem claro – descobrir qual era o problema e encontrar a solução, ajudando o paciente a retomar uma vida saudável. O risco era grande, mas a recompensa era ainda maior.
O diretor Crawford sabia de tudo que se passava no porão. E daria as respostas que ela queria. Explicaria que aquilo que Jocelyn havia visto era parte de um mal necessário.
Mas, primeiro, era preciso tomar o café da manhã.
O refeitório dos funcionários ficava ao lado do local onde os pacientes de baixo risco, mais estáveis, se alimentavam. Os olhos de Jocelyn acompanhavam o movimento das enfermeiras que eram afastadas de seus ovos com bacon por alguma solicitação ou algazarra no outro refeitório, com seus jalecos brancos flutuando como asas atrás de si.
À sua frente, Madge devorava uma pilha bem grande de panquecas.
– É o meu metabolismo, sabe – ela comentou entre uma garfada e outra. – Posso comer quanto quiser sem engordar um grama.
– Humm – Jocelyn não queria ser indelicada, mas estava um caco, o que Madge percebeu, obviamente.
– Sabe o que funciona muito bem? – ela tagarelou, pegando uma colher que ainda não estava usando e mostrando para Jocelyn. – Colocar algumas colheres no congelador antes de dormir, e de manhã pôr a parte arredondada sobre os olhos e voilà! O inchaço vai todo embora.
– Bem sutil.
Ela não estava demonstrando o mesmo apetite que Madge para o café da manhã. Normalmente seria assim, mas sua cabeça estava longe. Alguns bocados de aveia e um gole de suco de laranja foram tudo o que conseguiu engolir.
Sua amiga serviu-lhe uma xícara de café preto do outro lado da mesa.
– Para o caso de as colheres não serem suficientes – ela sussurrou com uma piscadinha.
– As senhoritas estão bem animadinhas hoje.
Jocelyn desviou os olhos do café, sentindo seu estômago rugir de ansiedade para sentir aquele sabor. O auxiliar que ela surpreendeu dormindo em serviço estava colocando sua bandeja no lugar vazio ao lado de Madge. E fazendo questão de se sentar bem perto dela.
– Bom dia, Tanner.
Ela lançou um olhar e arqueou a sobrancelha para a amiga, como quem diz: “Você não perde tempo mesmo”.
Madge encolheu discretamente um dos ombros e ficou toda vermelha.
– Joss, esse é o Tanner. Tanner, essa é, bom, a Joss.
Ela soltou uma risadinha adorável, e Tanner começou a ficar vermelho também, como se os dois estivessem estabelecendo naquele momento as bases para uma futura piadinha interna. Ele com certeza tinha cara de Tanner: alto, cabelos loiros meticulosamente penteados para os lados, corpo de atleta universitário… Mas havia uma doçura em seus olhos acinzentados que a convenceu de imediato que não havia um pingo de agressividade naquele corpo.
Jocelyn deu um bom gole no café e balançou a cabeça.
– Já vi você por aí, mas é um prazer sermos apresentados como se deve.
– O prazer é meu. Bem-vinda ao Brookline – ele falou com um suspiro. – Pode ser difícil se acostumar à rotina daqui, principalmente se for seu primeiro emprego. Se tiver algum problema, alguma pergunta, fico feliz em ajudar. Alguns médicos não reagem muito bem quando as pessoas pedem ajuda. Parecem que estão sempre atolados de trabalho até o pescoço.
– Pois é, né? – comentou Jocelyn, abrindo um sorriso nada convincente, mas ele nem notou.
– Pois é – ele respondeu. – Mas existe uma hierarquia, sabe? O diretor é o diretor, os médicos são os médicos. Quase como no exército, em certo sentido.
Jocelyn balançou a cabeça. Já tinha percebido isso de forma intuitiva, mas as palavras dele confirmaram a quem ela deveria recorrer primeiro.
– Estou pensando em escurecer meu cabelo – comentou Madge, enrolando um cacho loiro perfeito em torno do dedo e atraindo de forma eficiente o foco da conversa para si. – A Jackie tem um visual tão dramático com aquele cabelo preto. Tão misterioso.
– Jackie? – Tanner enfim começara a tomar seu café da manhã, que abandonou outra vez para olhar para Madge.
– Jackie Kennedy, seu tonto.
– Ah, claro. Claro.
– Enfim, o que você acha, Tanner? Vou procurar um salão de beleza na cidade. Será que existe isso em Camford? – ela deu risada, cortando a última panqueca em triângulos perfeitos.
– Seria uma pena. Sempre achei que as loiras se divertissem mais… – ele respondeu, muito mais interessado em Madge do que nos ovos mexidos no prato.
– Mas elas trabalham bastante também – retrucou Madge, franzindo a testa e mostrando o delicado relógio de pulso. – Hora do nosso turno. Torce para ser um turno tranquilo para nós duas!
– Os turnos aqui nunca são tranquilos – ele falou.
Ansiosa para começar a trabalhar, Jocelyn ficou de pé em um pulo, torcendo para que ninguém reparasse que mal tocara na comida e no café. Tanner estendeu o braço para o outro lado da mesa, agarrando-a pelo pulso e segurando-a até que ela fizesse contato visual.
– O que você está…
– Ei, não se preocupe. Com o tempo você começa a dormir melhor – ele disse com convicção.
– Quê?
Ela sabia que estava com olheiras, mas seu problema estava assim tão evidente? Ele a teria visto passar pelo saguão? Jocelyn vinha dormindo bem até então; foi aquela gritaria repentina que a fizera passar uma noite infernal.
– Eu também tive dificuldade para dormir quando cheguei aqui – acrescentou Tanner, largando seu pulso, soltando uma risadinha amargurada e sacudindo a cabeça. – Um horror. Parecia que eu estava ouvindo coisas, mas com o tempo passou. Se isso não parar, fala com o diretor Crawford. Ele pode dar uma coisinha para ajudar.
– Que tipo de coisinha? – ela perguntou, ouvindo o suspiro impaciente de Madge atrás de si.
Tanner encolheu os ombros, voltando-se para a comida.
– Não li o rótulo. Mas funcionou, e ele é médico, né?
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