Apunição implacável não veio. Mesmo assim, Jocelyn esperou que ela viesse. Esperou durante vários dias. Ia para a cama ansiosa e se levantava de seu sono inquieto com a mente enevoada, tão abalada que até a sra. Small, à beira da demência total, percebeu e fez comentários a respeito de seu comportamento. Durante o café da manhã, ela ouvia os cochichos das enfermeiras, fofocando sobre a infame fuga, mantendo distância para não se envolver, porém nenhum dos três foi chamado à sala do diretor Crawford para uma reprimenda.
Quando mencionava o fato, ele apenas se referia ao acontecido como “aquele pequeno incidente” e seguia em frente.
Isso deixava Jocelyn com crise de ansiedade, e a fez pensar que de fato tinha arriscado de forma deliberada o emprego dos três. Era uma autossabotagem escancarada, e foi totalmente ignorada.
Jocelyn se sentou na cama antes de encarar mais um dia, fazendo uma trança nos cabelos antes de prendê-los em um coque, e fixando-o com um grampo. As chuvas de primavera começaram de novo, mais fracas depois das primeiras semanas da estação, com o mês de maio já se aproximando. Madge estava de pé diante do guarda-roupa, pegando um par de meias de náilon.
– A pobrezinha – comentou Jocelyn, terminando de arrumar os cabelos e indo até a estatueta da Minnie Mouse no criado-mudo. – Eu contei para você? Quebrei essa coisinha umas noites atrás. Você nem acordou.
Ela inclusive perguntara à enfermeira Kramer se poderia pegar uns materiais de arte dos pacientes para consertar a pintura lascada, mas ouviu como resposta que “os materiais para terapia de arte não podem ser usados para fins recreativos”.
Por algum motivo, ela ficou com a sensação de que, se o pedido tivesse sido feito por outra enfermeira, seria concedido.
– Humm. Acho que você me contou.
– É mesmo? Geralmente eu ouço um monte de reclamações quando conto alguma coisa para você duas vezes – ela deu risada, mas o riso logo se perdeu quando seu olhar se deslocou da estatueta para a amiga.
Jocelyn não prestara muita atenção quando viu Madge pegando as meias, mas, observando melhor, percebeu que a amiga apanhara um par atrás do outro, segurando os dois por um tempo e depois colocando um deles de volta no armário. Ainda repetiu o estranho ritual por três vezes antes que Jocelyn enfim se manifestasse.
– Acho melhor começarmos a dormir mais cedo – ela sugeriu, pondo a Minnie de volta no criado-mudo, ficando de pé e alisando o uniforme. – Você está praticamente sonâmbula.
– Ah, é?
Jocelyn franziu a testa, indo até sua amiga e pegando um par de meias lisas, cor de pele.
– Esta aqui está boa. Essa outra parece meio… ousada. Melhor guardar para a noite de folga.
– Ótimo – disse Madge, arrancando as meias da mão dela. – Vamos descer logo para o café da manhã. Estou morrendo de fome.
Jocelyn balançou a cabeça e foi até a porta enquanto sua amiga terminava de se vestir. Ela vinha tentando ignorar a mudança no comportamento de Madge, que a estava tratando quase da mesma maneira que as demais enfermeiras. Levar Lucy para aquele passeio na cadeira de rodas transformara Jocelyn em uma pária, mas ela jamais esperaria que isso fosse mudar sua relação também com Madge. A mudança foi sutil, mas ela sentiu. Como poderia ser diferente? Madge era sua única aliada naquele lugar. E não parecia somente uma mudança de atitude em relação a Jocelyn… Madge parecia estar fumando mais, fazendo mais pausas no trabalho, carregando para toda parte um pacotinho de pastilhas, que mastigava constantemente, às vezes tão alto que deixava Jocelyn agoniada.
Quando Jocelyn pediu uma, Madge a encarou de forma atravessada e recusou sem hesitação.
Pelo menos Tanner ainda falava com ela de vez em quando.
Todo mundo aqui é maravilhoso, mãe. Um pessoal atencioso. Gentil. Você ficaria orgulhosa de ver como Madge e eu estamos nos saindo. O diretor gostou de nós, e acho que isso significa um futuro brilhante para ambas.
Ela fez uma careta ao se lembrar do que escreveu para a família. Três rascunhos foram amassados, rasgados e jogados debaixo da cama por conterem a verdade nua e crua. Atém mesmo escrever a respeito provocava uma estranha catarse – as longas horas de trabalho, os estranhos pedidos do diretor Crawford (ficar com os pacientes entre tal e tal hora, usar algumas palavras, mas não outras, dar exatamente um tipo específico de comida), os segredos, o frio no porão que nunca cessava, os surtos violentos e a gritaria…
Mas Jocelyn não se sentia capaz de enviar uma carta assim. Sua mãe ficaria preocupada, e isso era tudo que ela não queria.
Havia pelo menos uma coisa boa sobre a qual escrever, ela pensou com um meio-sorriso: Lucy tinha melhorado bastante nas semanas anteriores. Crawford inclusive sugeriu que Jocelyn levasse a menina lá para fora mais algumas vezes e, enquanto o diretor não estivesse por perto, o tempo ao ar livre parecia confortar e animar a criança, embora ela não houvesse dito mais nada desde a primeira saída.
Jocelyn desviou a atenção dos próprios pensamentos quando viu Madge caminhar até seu criado-mudo depois de vestir as meias de náilon. Segurando a estatueta da Minnie Mouse, sua amiga oscilava de forma quase imperceptível para trás e para a frente.
– Madge? Acho melhor nós irmos, não?
Os cachos loiros de Madge se ergueram quando ela respirou fundo e devolveu a estatueta à escrivaninha.
– Eu estava só olhando. Ela me lembrou de uma viagem que fiz à Disneylândia aos nove anos.
– Eu não sabia que você já tinha ido à Disneylândia – comentou Jocelyn, com um sorriso. – Sempre tive vontade de ir. Parece ser um lugar mágico.
– É mesmo – respondeu Madge, sorrindo ao se lembrar enquanto seguia Jocelyn para o corredor. – Para mim foi. Eu tive que subir em um banco, porque tinha uma multidão em volta do Mickey. Meu pai me falou para ficar quietinha e ter paciência, mas eu não me contive. Subi em um banco para ver melhor. Lembro que ele falou: “Cuidado, bonequinha, você pode cair! Não vá machucar esse rostinho bonito”. Mas, obviamente, eu estava tão emocionada que caí mesmo, e de cara, feito uma tonta. O Mickey veio até mim porque eu estava abrindo o berreiro. – Madge encolheu os ombros e deu uma risadinha. – Então acho que no fim consegui o que queria.
– Nós deveríamos ir juntas – sugeriu Jocelyn, toda alegre. – Talvez nas próximas férias. Vou ter juntado um dinheirinho até lá. Uma viagem faria bem.
– Eu bem que queria ver o Mickey de novo. E sem precisar subir em nenhum banco dessa vez.
Elas tomaram o café da manhã na mesa de sempre. Madge ficou em silêncio, comendo os ovos e o mingau da bandeja. Sua comida vinha demorando mais para ficar pronta ultimamente, mas Jocelyn não se importava. Seu apetite estava maior, mas não muito. Madge, por sua vez, parecia mais faminta do que nunca. Ganhara um pouco de peso, porém isso só a fez ficar ainda mais bonita; Jocelyn estava certa de que nada no mundo seria capaz de arruinar a aparência de Madge.
Os auxiliares tinham reparado, claro, e David e os demais se aglomeravam feito abutres quando Madge atravessava os corredores sozinha, mas ela só tinha olhos para Tanner. E era correspondida, pois o enfermeiro só faltava se babar todo quando ela passava.
– Enfermeira Ash.
Jocelyn teve um sobressalto, derrubando a colher de aveia e sujando o uniforme. Ela se apressou para limpar a bagunça com um guardanapo, e quando se virou deu de cara com o diretor Crawford ao seu lado, com a mão apoiada na mesa junto à sua bandeja. Madge, pelo jeito, estava entretida demais com seus ovos mexidos para notar a aproximação dele.
– Está tomando o café da manhã bem à vontade, pelo que percebi. – Ele recolheu a mão, enfiando-a no bolso em busca de uma bala antes de limpar a garganta e apontar com o queixo para a porta. – Preciso falar com você na minha sala.
– Eu termino aqui em um…
– Agora.
Jocelyn ficou pálida. Ele nunca tinha usado esse tom de voz antes. Ela pôs o guardanapo e seu copo sobre a bandeja e correu para o balcão de devolução. Quando voltou, Madge lhe fez um aceno rápido e apreensivo. Jocelyn não ousou retribuir o gesto.
Deus do céu. Estaria encrencada? Seguindo o diretor para fora do refeitório, Jocelyn repassou mentalmente tudo o que havia feito antes. Era possível que tivesse administrado uma medicação ou uma dosagem errada, ou esquecido de registrar algum procedimento. Mas era tão improvável! Ela prestava muita atenção aos detalhes, mesmo quando estava cansada, mesmo quando estava sob enorme pressão…
– Pode ficar tranquila, enfermeira Ash. Não tem nada de errado.
– É que o senhor não costuma me chamar desse jeito…
O diretor Crawford deu uma risadinha, balançando a cabeça e mastigando a bala de menta.
– Hoje é um dia incomum. Especial.
Especial? Jocelyn não gostou da maneira como ele disse aquela palavra. Eles chegaram à sala do diretor, mas permaneceram por lá por pouquíssimo tempo. Ela ficou de pé junto à porta, observando enquanto ele pegava uma pilha de fichas da mesa e uma maleta de couro com seus instrumentos. Ao contrário da sala, os instrumentos do médico eram mantidos na mais perfeita ordem, um fato que ela observou em uma rara ocasião em que o diretor os levou consigo em uma de suas rondas.
Eles desceram ao porão, um local que Jocelyn ainda considerava perturbador. Não importava quantas vezes passasse por aquelas escadas, ela nunca se acostumaria à sensação do frio penetrando seus ossos.
– E como vai a enfermeira Fullerton? – ele perguntou, em tom casual.
– Ah, vai bem. Eu acho. Trabalhando bastante, como todo mundo – respondeu Jocelyn.
– Você não parece muito convicta.
– Não consigo ler os pensamentos dela – retrucou Jocelyn.
– O que é uma pena – disse o diretor Crawford, com uma risadinha. – Ela pareceu bem perturbada depois de cuidar do sr. Heimline ontem. Tive que acalmá-la durante uma hora depois.
Jocelyn diminuiu o passo. Madge não lhe contara nada sobre isso. Não era muito do feitio da amiga esconder acontecimentos dramáticos.
– Eu não estava sabendo.
– Humm – ele deu de ombros, conduzindo-a pelo último lance de escadas até a entrada arqueada do corredor. – Ela deve ter se recuperado plenamente, então. Esqueça que eu toquei no assunto.
Com certeza, Jocelyn não se esqueceria, mas tentou não pensar muito nos problemas de Madge, pois notou que estavam indo para a cela de Lucy. Normalmente, Crawford parava bem antes de chegar à porta da menina, ciente de que mesmo sua mais breve visão a lançaria em uma espiral de pânico.
Dessa vez, porém, ele continuou caminhando até a porta sem deter o passo, fazendo um gesto para que dois auxiliares o acompanhassem. Em seguida parou e se virou para Jocelyn, observando-a por cima do nariz fino.
– Pode esperar na sala sete, enfermeira Ash.
– Mas a Lucy fica sempre tão calminha quando eu…
– Espere na sala sete.
Jocelyn fechou a boca e deu um passo atrás ao ouvir a ordem do diretor. A enfermeira ainda hesitou, mas Crawford a encarou até que começasse a se afastar, sem tirar os olhos dela, esperando até que ela deixasse o corredor. Jocelyn também não desviou o olhar, espiando por cima do ombro enquanto os auxiliares abriam a porta enferrujada e ruidosa da cela de Lucy.
A porta da sala de operações precisava ser aberta, o que interrompeu sua observação do corredor. A última coisa que ela ouviu antes de entrar foi um único e penetrante grito.
Aquilo era um pesadelo. Ela estava paralisada, sem controle de seu corpo e de sua mente, observando tudo como se sua alma tivesse se deslocado e estivesse pairando um pouco acima do nível do chão. Por que ela não conseguia se mexer? Era medo, ela sabia – junto com uma sensação aguda e devastadora de fracasso.
Lucy, que Deus a ajudasse, estava amarrada à mesa de operação, com seus gritos abafados por uma odiosa mordaça.
As unhas de Jocelyn se cravaram na palma das mãos, e sua boca tornou-se viscosa por trás da máscara cirúrgica branca. Os olhos pretos e vidrados da menina se mantinham fixos nas luzes sobre a mesa, refletindo os círculos amarelos perfeitos. Ela estava imóvel. Isso era o pior. Quando a arrastaram para lá, estava esperneando, berrando e se debatendo, mas agora, diante daquela resignação de olhos arregalados, Jocelyn sentiu que a menina desistira.
Ele quer abrir minha cabeça e tirar o que tem dentro.
Um calafrio impeliu Jocelyn a se aproximar da luz intensa sobre a mesa de operação. Os auxiliares que estavam lá, também vestidos de branco e máscara no rosto, fizeram uma pausa com as mãos ainda no ar, encarando a enfermeira. O diretor Crawford parou o que estava fazendo, baixando a reluzente serra de ossos.
– Sua participação no procedimento ainda não foi requisitada, enfermeira Ash – ele disse com gentileza. – Trate de se afastar.
A sala era fria. Fria demais. Como ele conseguia manter as mãos firmes para realizar a operação quando pareciam prestes a congelar? E agora, por cima da máscara de papel que cobria metade do rosto dele, ela conseguia ver os olhos do diretor. Apenas os olhos, e estavam diferentes. Afiados. Cortantes como uma navalha, perfurando a carne de Jocelyn da mesma forma como estava prestes a fazer com Lucy.
A pequena Lucy, ainda em silêncio, mas que sorria ao ver os passarinhos do lado de fora, e sorria ainda mais quando Jocelyn a chamava de “pardalzinha”.
– Isso é… Isso é mesmo necessário? Ela está melhorando. A passos largos. O senhor mesmo viu, tenho certeza. Por que o senhor não…
– Trate de se afastar.
Não deixe que ele abra a minha cabeça.
– Não – respondeu Jocelyn. Sua voz tremia, mas ela fez questão de marcar posição. Isso era tudo o que importava. Fazer a coisa certa por Lucy, isso era o importante. Era a razão de Jocelyn ter se tornado enfermeira. Era o motivo pelo qual ela não havia ido embora do horrendo e obscuro Brookline, para começo de conversa. – Não, eu não posso permitir que o senhor faça isso. Não existe justificativa médica para esse procedimento. O senhor sabe que nada disso está certo. Nós dois sabemos.
O diretor Crawford se aproximou dela em uma explosão de temperamento e um grito repentino a fez recuar às pressas. Ele arrancou a máscara, quase rugindo de irritação.
– Como você ousa me questionar? Como ousa? – Seu corpo inteiro tremia, com os olhos arregalados, mais sombrios e afiados do que nunca. Ele olhou para baixo, notando o tremor pronunciado nos próprios braços. – Menina idiota. Agora não vou conseguir fazer mais nada hoje – ele grunhiu outra vez e fez um gesto vago para os auxiliares. – Recolham tudo. E tirem a paciente daí.
Um dos auxiliares limpou a garganta, inquieto.
– Mas, senhor, o choque eletroconvulsivo…
O diretor se virou e golpeou com as mãos a bandeja de instrumentos, lançando peças reluzentes de aço inoxidável em todas as direções, produzindo um barulho que assustou a todos.
– Será que alguém nesta porra de hospital ainda escuta o que eu falo?
Jocelyn ficou imóvel, com a respiração tão acelerada que a máscara de papel começou a entrar e sair de sua boca, inflando e desinflando sem parar. A voz dele ecoou pela pequena sala de operações, e os auxiliares permaneceram em um silêncio tão perplexo quanto o dela.
– Você – ele disse por fim, recobrando o fôlego e apontando para ela. – Fora. E, vocês dois, me ajudem a levar a paciente de volta para o confinamento.

– Você não me contou o que aconteceu com Dennis Heimline.
Jocelyn não queria ter falado tão alto, mas precisava conversar sobre alguma coisa, qualquer coisa, para distrair a mente do que vira na sala sete. Ele ia fazer uma operação. Em Lucy. Ia fazer uma operação totalmente desnecessária na garotinha.
Lucy estava certa. Por que ele queria tanto fazer uma operação nela?
Madge estava andando de um lado para o outro diante da porta dos fundos do Brookline. Era um dos poucos lugares onde as enfermeiras podiam ter alguma privacidade. E um dos poucos lugares onde Madge podia fumar um cigarro sem receber um sermão da enfermeira Kramer. Jocelyn detestava ver o quanto sua amiga andava fumando, mas a invejava por poder se aliviar em um vício. Talvez fosse interessante arrumar um também.
– Ele simplesmente… me atacou. – Madge fez uma pausa, olhando para o panorama distante da cidadezinha mais abaixo.
Camford se espalhava pela encosta do morro onde ficavam o Brookline e a faculdade. Era estranho, pensou Jocelyn, até conceber que houvesse uma vida acadêmica ao redor do hospital. Os estudantes evitavam o Brookline como se o lugar estivesse contaminado por uma doença contagiosa. Ela estava começando a entender o porquê.
– Ele estava falando sobre as Montanhas Brancas de novo – continuou Madge, observando a ponta acesa do cigarro. – E então alguma coisa mudou, e Dennis se transformou em outra pessoa. Ele é estranho, mas costuma ser inofensivo. Nunca me ameaçou, nunca falou nada que me assustasse. Não sei o que aconteceu… Era Montanhas Brancas isso, Montanhas Brancas aquilo e, de repente, ele partiu para cima de mim. Voou no meu pescoço, Joss! Foi horrível – ela estremeceu, dando outra longa tragada. – Quero que você pose para mim. Foi isso que ele falou. Meu Deus do céu, foi muito, muito assustador. Quero que você pose para mim, você ia ficar linda.
– Por que você não me contou? – indagou Jocelyn, baixinho.
Ela estava sentada nos degraus, se escondendo da garoa sob a proteção rasa de um beiral.
– Você estava tão envolvida com a Lucy… Não queria que se preocupasse.
– Bom, você não precisa mais esquentar a cabeça com isso. – Jocelyn apertou o nariz entre os olhos e suspirou. Ela precisara intervir, mas agora quem protegeria Lucy do diretor? – Eu estraguei tudo mesmo, Madge. Provavelmente vou ser demitida e nunca mais vou poder ver a Lucy.
Sua amiga descartou o cigarro, mirando num tronco de árvore úmido. Elas ficaram sentadas juntas nos degraus. Madge pôs o braço em cima dos ombros de Jocelyn.
– Mesmo assim, acho que você fez a coisa certa. Enfim, eu ouvi a Kramer cochichando com uma das outras meninas. Parece que o Crawford quer você trabalhando com um paciente novo que está para chegar. Pode não conseguir ajudar a Lucy, mas talvez esse novo caso seja mais fácil.
Jocelyn balançou a cabeça, engolindo a resposta cínica que se sentiu tentada a dar.
– Bom, meu bem, preciso ir – anunciou Madge, se inclinando para abraçar a amiga com apenas um dos braços. Em seguida se levantou e ajeitou o uniforme respingado de chuva. – O Crawford quer falar comigo. De novo. Acho que o velhote asqueroso tem uma queda por mim ou coisa do tipo.
– Sobre o que ele quer falar com você? – Jocelyn se apressou em perguntar, sentindo um pavor repentino e inexplicável.
– Alguma coisa sobre o Dennis. Disse que agora eu preciso “ver”, o que quer que isso signifique – respondeu Madge, parecendo triste. Resignada. – Disse que preciso constatar o verdadeiro estado de Dennis, que não existe esperança para ele. Quando não existe esperança, só resta a sobrevivência, foi o que o Crawford falou. Sabe de uma coisa? – Ela fez uma pausa, mantendo a porta aberta, com os lábios volumosos se contorcendo para o lado. – Acho que eu devia mesmo tingir o cabelo de preto. Ia ficar parecida com a Jackie, né? Talvez eu me sinta melhor se tiver um pouquinho mais de glamour na vida. Vou perguntar para o Tanner o que ele acha. Vamos sair juntos de novo hoje à noite. Acho que dessa vez a coisa engrena.
– Ash. Enfermeira Ash. Cinzas. Um nome apropriadamente macabro para esse calabouço tão simpático.
Jocelyn piscou algumas vezes, perplexa ao encarar seu novo paciente, observando sua silhueta alta e magra, seus cabelos pretos jogados para trás e seus olhos de um verde quase artificial. Caso se tratasse de um dos auxiliares, imediatamente entraria para a lista de alvos prioritários de Madge. Mesmo Jocelyn era obrigada a admitir, de uma forma silenciosa e envergonhada, que o considerava incrivelmente bonito. Havia algo de feminino em seus contornos e suas mãos, e na maneira como se recostou na cama branca e vazia, com os braços sobre o peito e as pernas cruzadas.
– Não vou reclamar se isso ajudá-lo a manter o bom humor a respeito da situação – respondeu Jocelyn, com um tom jovial. – Vamos ter que aprender a conviver – ela acrescentou, consultando o histórico do paciente diante de si. Era bom saber alguma coisa a respeito de quem estava tratando, sem aquela estranha ausência de informações sobre o passado, como no caso de Lucy. Ou de Dennis. – Prefiro ver meus pacientes bem-dispostos, se possível. No mínimo, que sejam cooperativos.
– Sim, sim – ele murmurou, batendo continência. Os lábios dele se acomodaram em um risinho, sua posição natural. – E como você conduz a nau dos insensatos? Gosta de dar duro ou prefere ser mais suave?
Ele ergueu as sobrancelhas, mas isso não chegou nem perto de abalar Jocelyn. O velho sr. Goldblatt do quarto dezesseis fazia gracinhas abomináveis, com insinuações sexuais e frases de duplo sentido que nem mesmo Madge era capaz de decifrar.
– Sei que isso tudo deve ser difícil para você – ela começou, olhando para a ficha e verificando o motivo da internação.
Aquilo era novidade. Por sorte, sua única função era administrar a medicação prescrita pelos médicos e verificar a condição física dele de tempos em tempos. Sua tarefa não era curá-lo. E talvez fosse melhor assim, pois ela não andava curando muita coisa ultimamente.
Desmond, Carrick Andrew
Sexo: Masculino
Motivo da Internação: Preferências Sexuais Antinaturais
Bom, isso explicava muita coisa.
Ele deve ter percebido que Jocelyn arregalou os olhos, pois deu uma risadinha e falou:
– Fui pego na cama com o filho do vizinho. Um rapaz bem crescidinho, que fique bem claro. Não sou assim tão pervertido.
– Eu não usaria a palavra pervertido de forma nenhuma, sr. Desmond – ela respondeu de imediato, erguendo os olhos da ficha e encontrando o olhar faiscante e desafiador do paciente. – Não gosto desse tipo de definição. Isso só serve para causar vergonha. E um tratamento não deve ser baseado na vergonha.
As sobrancelhas dele se ergueram em uma expressão de surpresa. Ele a encarou como se estivesse lendo sua mente.
– Estou chocado, enfermeira Ash. Mas no bom sentido.
Ela deu uma risadinha, acostumada com os gracejos que os pacientes faziam para cair em suas graças e tentar driblar algumas regras.
– Por favor, me diga se tiver algum problema de adaptação. Se acostumar à rotina daqui pode ser… – Terrível, impossível, foi o que ela sentiu vontade de dizer. – Complicado.
– Ah, não é nada com que eu não consiga lidar, pode acreditar. Fui criado por carcereiros.
Jocelyn recuou alguns passos na direção da porta, fazendo uma careta.
– Pelo jeito a vida foi bem injusta com você.
Os olhos dele, verdes e brilhantes sob os cabelos pretos, se fixaram na enfermeira outra vez.
– Pelo jeito a vida é injusta com todos. Você pode até acreditar que não sou pervertido, mas infelizmente não manda nada aqui. Não é você quem manda prender e soltar os pacientes.
– Volto para ver como você está daqui a pouquinho – ela respondeu, antes que acabasse tentada a estender a visita mais do que deveria.
A porta se fechou, e ela a trancou. Nem um segundo depois, veio o grito. Ela conhecia aquele grito. Vinha impedindo que ela dormisse e frequentando seus pesadelos desde a primeira vez que o ouviu.
Lucy.
Não, ela pensou, saindo em disparada pelo corredor. Ele não pode abrir a cabeça dela.
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