Prefácio

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O USO MODERNO DA palavra mártir exige que iniciemos a apresentação desta obra com uma definição clara. Optamos pela acepção mais comum articulada no Dicionário Houaiss (2001): o mártir é uma "pessoa submetida à pena de morte pela recusa de renunciar à fé cristã ou a qualquer de seus princípios". Ou seja, no sentido mais tradicional, não se trata de um assassino-suicida que mata pessoas alheias com o intuito de vingar-se ou defender uma ideia. Pelo contrário: o verdadeiro mártir é sempre vítima de agressão e violência. O mártir cristão é aquele que prefere morrer a renegar seu Senhor e sua fé.
Acreditamos que um estudo sobre a postura dos mártires cristãos de todas as épocas pode nos levar ao cerne da fé. Entendemos que o martírio em si não legitima a fé nem justifica doutrinas por si só. Não é o ato de sacrificar-se em nome de uma convicção que transforma esta convicção em verdade. Porém, quando compartilhamos desta convicção, o que observamos no mártir nos leva naturalmente a uma reflexão a respeito da natureza da nossa própria fé.
O Livro dos Mártires é um clássico sem paralelo que reconta as vidas, os sofrimentos e as mortes triunfantes dos mártires cristãos da história. Iniciando-se com a história do primeiro mártir – o próprio Jesus Cristo – este relato histórico excepcional traça os caminhos da perseguição religiosa. Expõe os casos de mártires famosos como John Wycliffe, John Huss, William Tyndale, Thomas Cranmer e muitos outros.
O autor, John Foxe (1516-1587), nasceu na Inglaterra e estudou na Universidade de Oxford. Tornou-se professor dessa instituição e uniu-se aos reformadores ingleses. Quando a católica romana Mary Tudor assumiu o reinado do país, ordenou a perseguição dos protestantes reformadores. John Foxe conseguiu escapar e fugiu para a Alemanha. Durante seu exílio na Alemanha e na Suíça, começou a compilar informações sobre martírio e perseguição dos cristãos. A primeira edição desse livro foi publicada em 1559, em latim. Após a entronização da protestante rainha Elizabeth, Foxe voltou à Inglaterra. A tradução inglesa foi editada em 1563, sob o título The Actes and Monuments of These Latter and Perilous Dayes. No entanto, a obra tornou-se conhecida popularmente por O Livro dos Mártires, título que consagrou-se ao longo da história.
Não satisfeito apenas com as denúncias do livro original, o autor acrescentou ao manuscrito outros relatos e narrativas ao longo de sua vida, e supervisionou a edição de várias edições expandidas. Hoje há várias versões da obra, algumas com relatos acrescentados por editores após a morte de Foxe. A mensagem d'O Livro dos Mártires moldou a consciência religiosa e política da Inglaterra durante vários séculos.
A presente edição deste livro é uma tradução da versão em inglês, revista e reestruturada por W. Grinton Berry. A tradução – primorosa – foi empreendida por Almiro Pisetta, ex-professor de poesia inglesa e norte-americana na FFLCH/USP. Entendemos que o tradutor conseguiu destrinchar a sintaxe labiríntica de Foxe, produzindo um texto inteligível ao leitor brasileiro sem ferir as intenções do autor. O que é mais admirável é que a oportuna simplificação da prosa de Foxe não soa anacrônica, pois o tradutor teve o cuidado de manter traços da formalidade típica dos textos da época. Para esta edição, encomendamos 16 gravuras do jovem artista plástico brasileiro Marcelo Moscheta. Comentando a sua opção ilustrativa, o artista escreveu:
Somos pessoas do presente século e, como tal, leremos este livro com a mente deste século, procurando ser tocados pelo exemplo deixado por aqueles grandes homens de Deus. Nesse sentido, meu desejo foi fazer uma obra atual, contemporânea, representativa do que vivemos nestes últimos dias.

A anatomia me traz a sensação de estar entrando na carne de alguém, sentindo suas dores, ouvindo cada batimento cardíaco. Todo o sofrimento destes homens de Deus foi na carne; toda a dor, todo o fogo que ardeu, queimou a carne somente. A proposta de fazer este ensaio optando por gravura em metal não foi à toa. As primeiras edições deste livro foram assim ilustradas, com cenas literais e realistas. Nesse contexto, acredito contribuir para a memória desta obra também. Além disso, a gravura em metal possui um processo interessante. Assim como as estampas que representa, a chapa de cobre (metal nobre) é cortada, limada e lixada várias vezes. Ela passa pelo fogo e pela corrosão de ácidos e mordentes. Sofre a ação de pontas e instrumentos cortantes até estar preparada para a impressão final.

Considero a técnica do lavis (as áreas de mancha), que muitas vezes remete-me a uma radiografia, a parte "espiritual" destas estampas, como se pudéssemos enxergar o espírito deixando o corpo e todo o sofrimento para trás.

Nossa intenção ao lançar esta nova edição d'O Livro dos Mártires é provocar, em cada leitor, uma reflexão sobre a extensão e a profundidade da fé cristã.

– Mark L. Carpenter

Editora Mundo Cristão

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