X - Sofia

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Sofia abria os olhos para se descobrir cercada por água. Estava chovendo, o que atrapalhava a visão. Tentava levar sua mente para os últimos acontecimentos, os que a levaram para se encontrar quase submersa, mas nada conseguia constatar.
A última lembrança em sua cabeça era um ataque com todas as forças no seu corpo contra uma das bruxas que atacara o navio. Ela estava em perigo, assim como o Rei... Pietro... e seu pai!
Todos os tipos de pensamento tomavam conta da cabeça de Sofia, mas logo soubera no que tinha que focar por ora. Percebera que estava boiando com ajuda de um longo pedaço de madeira e que rapidamente iria afundar novamente, dessa vez permanentemente.
A origem da madeira atingia Sofia com força. O navio, as bruxas. O Veleiro Negro afundara levando junto toda a sua tripulação – com exceção do Rei e Pietro, que haviam sido levados pelas bruxas.
Sofia sempre fora protegida. No orfanato, no castelo, com seu pai. Nunca tinha sido exposta aos problemas de verdade até aquele momento crucial no navio. Conhecia a ameaça, conhecia as implicações da viagem para Mura, mas nunca tinha enfrentado o inimigo de frente e agora sabia o porquê poucos o faziam.
O poder, a força, a determinação. Sofia vira a sua morte se aproximar naquele navio e continuava tendo essa sensação, agora misturada com o desespero da perda da vida do seu pai também, o qual não via desde o navio, antes de apagar.
Sofia examinava seus arreadores e selecionava possíveis fontes de melhoria a seu estado atual. Com isso, tentaria melhorar suas condições de sobrevivência, criando alguma esperança de chegar a algum lugar com terra. Mesmo que não visse nada parecido com terra firme ao se redor e sendo cuidadosa para não criar esperanças falsas – como tinha sido treinada a fazer pela Guarda Real -, via potenciais formas de sobrevivência.
Empurrando a água com as mãos e tentando seu melhor para se manter equilibrada, Sofia seguia em direção a um dos destroços do navio que boiava a alguns metros, esse que poderia oferecer mais estabilidade na sua busca por terra.
A medida que ia navegando, um barulho que vinha de trás começara a incomodar Sofia. Era escuro e sua visão não estava sendo ajudada pela chuva, não podia ver o que estava acontecendo. Mas algo vinha atrás dela e estava cada vez mais perto.

Para a surpresa de Sofia, algo tocou seu ombro. Ali, abandonada no meio do oceano, a noite e no meio de uma forte chuva, um toque desperta Sofia do seu transe de sobrevivência.
- Sofia – a voz era pesada e chorosa, mas ela reconhecia. Era seu pai. – Vamos fazer isso juntos.

Tobias tinha um dos maiores pedaços de madeira do navio, aquilo garantiria uma navegação mais segura para os dois, não por muito tempo, mas tempo suficiente para encontrar ajuda. Era a esperança de Sofia.
- Eu pensei que nunca mais lhe veria, minha filha – Tobias falava com uma voz chorosa enquanto tinha os braços envolta da filha. – Eu pensei que estava morto, e pior, você estava morta.
- Eu também. – Sofia conseguia dizer – Eu também.
- Vai amanhecer em breve- Sofia falara alguns minutos depois – Temos que ter um plano. Para onde vamos, como chegar lá... como pedir ajuda.
- Temos que garantir a sobrevivência, é isso. Continuar a fazer o que estamos fazendo: viver – Tobias parecia calmo – É tudo que precisamos por ora. Você não quer tirar um cochio?
Um cochilo? Sofia não podia acreditar que o pai continuava a lhe tratar como criança mesmo nessa situação. Tudo que ele falava parecia estranhamente calmo e despreocupado para Sofia. Ele poderia estar em choque, ela entenderia e por isso não esperaria muito dele nesse momento. Ela agiria corretamente na hora certa.
- Não, eu não preciso de um cochilo agora. – Sofia observava a vastidão escura ao seu redor. – E você... está bem?
Aparentemente, era uma pergunta difícil para Tobias. Ele não respondeu "sim" ou "não" no momento. Só olhara para frente e esperava algo, alguma ação sobrenatural, Sofia acreditava, que pudesse mudar milagrosamente aquela situação. A situação deles.

Aos poucos, iam se distanciando do local onde o navio afundara. Com o tempo, o número de destroços diminuía.
- Sofia, olha isso! – o seu pai apontava para uma caixa boiando ao lado deles.
- O que é isso?
- Eu acho que é um presente dos deuses para você.
Ansiosamente, Sofia abrira a caixa para descobrir uma possível grande aliada nos tempos que estão por vim – se esses chegassem para os dois.
- É a lança, é ele. A lança de Pietro, estava guardada junto as bagagens do Veleiro.
- É seu agora, uma mensagem dos deuses diretamente para você. – pela primeira vez, Sofia lembrava do sorriso do pai. – Devia se sentir especial.

O sol nascia aos poucos trazendo um novo dia. Provavelmente o último, pensou Sofia. Ela se preocupava em não alarmar o pai, a sua prioridade no momento, e tentar fazer parecer que os dois tivessem realmente alguma chance de escapar do oceano.
Tobias parecia focado. Olhava para trás. De onde tinham vindo. Não olhava para frente, olhava para baixo. Para a água. Parecia esperar algo.
- O que foi? – Sofia perguntara
- O que?
- Parece esperar algo, olhando para a água. Nossa salvação não está ai, está no horizonte, olhando para frente. – Sofia dizia calmamente. – Nós vamos sair daqui.
- Claro, claro. – Tobias dizia de uma maneira que não passava confiança nenhuma para a filha.

Sofia começara a sentir fome, não comia nada desde o jantar interrompido. Ansiava por algum navio. Qualquer um, piratas, reinos, bruxas – do bem – até.
Uma movimentação nas águas começara a chamar a atenção de Sofia. O rosto do seu pai mudara de repente.
- Eu sabia, eu sabia que você viria. – Tobias tinha esperança nos olhos. – Eu estava as vendo ontem! AQUI! ESTAMOS AQUI! VENHA NOS BUSCAR!
- Do que você está falando, pai?
- Da sua salvação, minha filha!
- Que salvação?
- Eu! – uma voz dizia. A voz veio acompanhada de um corpo que emergia da água. Uma mulher, com volumosos e cacheados cabelos se fazia presente. Mergulhara e nadava para se aproximar, revelando uma longa cauda no lugar de suas pernas.
- Uma sereia? – Sofia não entendia – Como sabia que ela viria?
- Ele não sabia – a sereia estava ao lado da madeira dos dois agora – Ele só espera com muita vontade, não é?
- O que você quer? – Sofia tentava parecer ameaçadora.
- Não fale com ela! – Tobias parecia desesperado – Fale comigo, negociei comigo!
- O que você quer, velho homem? – a sereia tinha uma voz que parecia enfeitiçar Tobias.
- Ela! Ela, minha filha, ela precisa viver. – Tobias falava rápido e ficava sem fôlego. – Eu já vive, já fiz o que eu queria, já tive minha alegria... e minha alegria precisa viver.
- Você sabe como funciona, não é? – A sereia ria.
- Eu sei, por isso estou dizendo. Eu me entrego, eu não tenho problema em ir.
- Pai, o que você está dizendo? – Sofia sabia o que o pai querida, o que estava acontecendo, mas não queria acreditar. Via a vida do seu pai indo embora por meio de uma negociação para salvar sua própria vida.
- Sofia, ah, Sofia. – Tobias olhara dentro dos olhos da filha. – Eu te amo, amo mais que tudo que já amei na minha vida. Quando eu tive que te entregar para a Senhorita Jacob eu fiz a decisão mais importante da minha vida. Eu só não sabia que faria a mesma decisão tantos anos depois. Eu escolho seu bem-estar. Sua felicidade. Eu escolho que você viva em paz não importa o que me custe. Por favor – e virara para a sereia. – Deixe ela em terra firme. Me leve, me mata, faça o que quiser, mas salve a minha filha!
- Seu pedido, e oferta, são bem vindos – a sereia se movimentava – e será realizado... agora.
O movimento ao redor, na água, voltara e agora trazia uma segunda sereia.
- Boa sorte, garota. – a sereia nova segurava Sofia.
- Pai, você não pode fazer isso! Eu e você vamos sair dessa... sozinhos! Nós podemos pensar num...
- Por favor – Tobias suplicava.
- O que? – indagava Sofia enquanto se sentia sonolenta depois de um beijo que a sereia lhe aplicara na bochecha. Pegara sua nova lança e pretendia lutar contra a sereia. Tarde demais, tudo ficara preto e ia se apagando.
Sofia era arrastada em alta velocidade pela criatura do mar enquanto observava Tobias afundando junto a sereia que ficara, o levanto para sua morte.

O Veleiro Negro - As Crônicas de Ur IIOnde histórias criam vida. Descubra agora