SUICÍDIO

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De tempos a tempos, desconfiado, cioso de seus deveres e obrigações como chefe da família, papai me olhava com aquele olhar de certeza inquestionável e dizia:
- Essa menina está aprontando alguma coisa, Sônia. Eu tenho certeza de que ela... - blá - blá - blá...
  Tinha horas que, de tanto ele falar, até dava vontade de da um cunho de verdade aquelas fantasias tolas e as insinuações maldosas que passava pela cabeça de meu pai.
  Certa vez, eu até disse que ia acabar fazendo fila de homens na nossa porta só para deixá - ló satisfeito e certe de que eu realmente não prestava. Levei uma bela surra para deixar de ser abusada.
  Eu levei a surra e minha mãe, a culpa.
   - É você que da toda liberdade à essa menina! - acusou meu pai.
    No fundo, no fundo, era um tanto de inveja e outro tanto de frustração. Eu era filha única e papai sempre sonhou com um filho homem, segundo suas próprias palavras e como se houvesse outra espécie de filho do sexo masculino. Além do mais ele não se conformava entre o relacionamento entre mim e mamãe.
   Conseguimos conversa sem nós agredir. Nós respeitávamos mutuamente e, de vez em quando, éramos até um pouco cúmplices.
  - Depois de alguns anos de casamento, acaba o amor e fica alguma coisa que muitas vezes pode ser afeição e, noutras tantas, apenas indiferença - reclamava ela, melancólica.
   Os meus maiores temores em relação ao casamento nasceram e floresceram à sombra das decepções que mamãe acomulava diante do casamento dela.
   Não era uma coisa boa. Era muitas vezes rotina. Monotonia. Noutras tantas, apenas solidão e resignação de parte a parte.
   Seria assim comigo e com Rubinho também?
   O produto final de anos de amor e devoção seria apenas outros tantos anos de decepções?
   Éramos realmente amigas. A medida que a solidão aumentava, e eu sentia que mamãe mais se dedicava a mim. Ainda quando era criança, eu gostava, mas, com o tempo eu passei a sentir muita pena dela. Não gostava de deixá - lá sozinha. Ia com ela para todo lado. Ela precisava.
   Não havia segredos entre nós. Ela sabia que eu tomava pilula des dos dezesseis, mais preferia que isso ficasse apenas entre nós. Tinha confiança em mim e sabia que aquela fila que eu prometera na porta de nossa casa havia ficado no passado, num momento de raiva e contrariedade.
  - Prevenir acidentes é dever de todos - dizia, repetindo uma frase que meu pai gostava de recitar de tempos a tempos, vigiando meus namoros.
   Gostávamos de contar coisas uma para a outra. Mexericos passados de boca em boca pela vizinhança. Ela gostava de falar de suas decepções com o casamento, principalmente depois de uma noite maldormida, com um homem bêbado e cheio de recriminações a seu lado. Gostava de falar e, ainda mais, de visitar minhas tias. Bem quase todas as tias. De tia Samira ela não gostava, não.
   Tia Samira era aquele tipo de solteirona que enche paginas de livros dr autores famosos com suas excentricidades e rabugices. Sob certos aspectos, principalmente no que concerne à moral e aos bons costumes, ela parece uma copia feminina e mais enrugada de meu pai.
   Essa menina anda muito saidinha, não é mesmo, Sônia? ,sempre foi a frase favorita dela, principalmente quando eu lhe dava uma resposta aborrecida e malcriada.
   Não sei se sou um tanto ou quanto intransigente liberal, mas sempre me pareceu que um moralista é alguém que tem algo a esconder. Não gosto de gente ditando normas e fazendo pré julgamentos. Não gosto, simplesmente não gosto.
   Minha mãe confiava em mim. Por isso, eu andava há algum tempo meio preocupada. Temia decepciona lá ao lhe contar e pôr lenha na fogueira das certezas inquestionáveis de meu pai.
   Acabei contando.
   Não foi difícil. Foi surpreendente fácil.
   Ela estava sozinha na cozinha. Eu entrei. Mãe sorriu para mim, disse qualquer coisa como O Noivado fez bem a você. Você está tão sorridente.
- Mãe estou grávida.
   Silêncio.
   Silêncio prolongado, denso, daqueles que se corta com uma faca e de se sentir apertado, se fechando em torno de nós. Sufocante.
   Ela ficou meio chocada.
   Não disse nada. Durante uns minutos, ficou apenas me olhando, talvez pensando no que dizer. O meu repertório também avia se esgotado depois da quelas quatro palavras devastadoras.
- Você tem certeza ?
- Faz dois meses que eu não fico...fico... A senhora sabe, mãe!
- Pode estar atrasada...
- Dois meses mãe.
   Silêncio.
Mamãe tomou uma forte respiração e eu pensei que meu mundo ia acabar. Nada até eu me surpreendido, quando ela sr encostou na pia e começou a rir. Mais rir mesmo, da quelas guargualhadas que eu só via ela uma ou duas vezes em meus dezessete anos de vida. Ela riu tanto que eu até fiquei aborrecida.
- Ò, mãe, se eu soubesse que isso ia deixar tão alegre tinha contado também algumas piadas de português e dado uma ou duas cambalhotas! - resmunguei, cruzando os braços sobre o peito.
   Ela não parava de rir.
- Eu morrendo de medo de contar para a senhora, precisando de ajuda, e a senhora... A senhora... A senhora nem liga!...
- Ah, não é isso, filhinha... Me desculpe, mas eu não conseguia parar de rir...
- Ah muito obrigada! Eu não sabia que minha gravidez era tão engraçada!
- A sua gravidez não é, não, mais eu estava pensando na cara do seu pai se soubesse.
   Empalideci.
- A senhora vai contar pra ele?
- O seu seguro de vida está em dia, filhinha?
- Não.
- Nem o meu! Mas de qualquer forma, eu bem que gostaria de contar pra ele, só pra vê a cara que aquele machão vaidoso faria...
- Antes ou depois de morrer do coração? - perguntei gargalhamos juntas.
   Decidimos não contar nada. Depois mudamos de ideia e preferimos contar aos pouquinhos.
- Talvez, sabendo que vocês vão casar, ele não fique bravo.
- Se ele souber que o neto será homem, duvido que continue tão bravo.
   Nós duas choramos como duas mães de primeira viagem quando o médico apontou para um minusculo ponto na televisãozinha e disse:
- Ainda não da para dizer o sexo, mais você está vendo este pontinho aqui? É o coraçãozinho dele!
   Meu filho... Meu filho...
   Andava nas nuvens. Nem a cara amarrada de meu pai depois que começamos a lhe contar serviu para me tirar da quele estado maravilhoso de felicidade interminável. Dava até medo de me agarrar tão completamente àquela felicidade.
   E se ela acabasse?
   E se ela se fosse?
   Não, não impossível. Oque poderia acontecer? Não avia nada. Eu estava apaixonada e era amada por alguém muito legal. Estava tão destante da dor quanto o bem do mal.
   Passei de ano. Férias. No ultimo dia de aula a camisa autografada com nome de muitas gentes que jamais veríamos novamente, cabeças voltadas para os exames do segundo grau. Valéria e as outras encontraram tempo para sr reunir na casa dela r organizar o chá de bebê antecipado. Ninguém levou nada. Foi na hora. Grande improvisação. Um bando de garotas descabeladas e apressadas rumando para o shopping e tomando meia duzia de lojas de salto.
   No fundo, um prestesto para a grande farra dr ultimo dia de aula que todas elas planejavam há pelo menos um mês. Entre babadores e chupetas, surgiu até bum arremendo de despedida de solteira.
   Enrolada em papel higiênico e usando uma grande faixa onde se lia Mãe do Ano desfilei pra cima e pra baixo, todos os olhos do shopping voltados para mim, morrendo de vergonha e quase morrendo de rir.
   A Cleusa parecia um enorme pimentão, vermelha de tanto rir. Quem disse que ela conseguia parar.
   Nada.
   Ria. Ria. Ria
   Ria tanto que depois de algum tempo. Éramos nós que estávamos rindo dela.
   Elas compraram tanta coisa e eram tantos os pacotes que Valéria, a milionária do grupo - o pai dela tinha um restaurante na Tijuca - acabou pagando o táxi.
   O motorista aceitou a corrida, mais durante toda a viagem ficou olhando pra nós através do retrovisor, talvez imaginando de onde haviam saido ou temendo que dessemos o endereço de algum hospício. Só para implicar ou deixa ló mais nervoso, de quando em quando a Paula e a Silvinha, muito doidas, ficavam ficavam fazendo caretas para ele.
  Passamos quase toda viagem rindo e cantando algumas músicas do Roberto Carlos.
   Quando as crianças saírem de férias, talvez a gente possa entao se amar um pouco mais... E ser feliz....
   Mais risos
   Cheguei em casa gritando o nome da minha mãe e com as garotas caminhando atrás de mim em fila indiana, os embrulhos na cabeça pilhas equilibradas sabe se lá Deus como, risinhos e mais risinhos.
   Mamãe veio me encontra na porta. Minha alegria não resistiu à tristeza e ao medo que vi em seu rosto.
- Aconteceu alguma coisa mãe?
   Naquele momento, ninguém mais ria. Minha mãe começou a chorar. Chorar e soluçar.
- Fala mãe.... O que houve?
   Ela me olhou, os olhos marejados de lágrimas, as rugas aparecendo mais e mais em torno de seus olhos rodeados por olheiras cinzentas e melancólicas.
- Mãe...
- Ligaram da casa de Rubinho, filha...
- Aconteceu alguma coisa? O Rubinho...
   Lembrei que a três dias ele não aparecia.
- Era o pai dele... Todos estão muito chocados... Muito... Muito...
- Chocados? Chocados com o que mãe? Por Deus, mãe! Para de chora e fala! A senhora já está me deixando nervosa...
- É o Rubinho, filha... Ele se suicidou...
  Desmaiei.

Um sonho dentro de mimOnde histórias criam vida. Descubra agora