DEPOIS DA REVELAÇÃO

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   Meu pai ficou tão arrasado com a noticia de que Rubinho se suicidara porque tinha AIDS que nem ao menos brigou comigo. Ele simplesmente não encontrou forças.
   Depois que lhe contamos e enquanto esperávamos pelo pior - uma reação explosiva talvez - papai ficou apenas nos olhando, olhando mais para mim, como se tevesse uma dor profunda mas recente em seu coração.
   Sabia exatamente no que ele estava pensando.
   Era no que eu também estava pensando. Foi o que não me deixou dormi naquela noite.
   Na manhã seguinte, minha mãe me acompanhou até o médico. Ela ficou insistindo o tempo inteiro que era rotina - talvez para convencer a se mesma, pois faltava convicção na voz dela - que era apenas outro exame para ver como andavam as coisas com o meu filho, que eu não devia me preocupar.
   Ela falava, e quanto mais falava eu preocupava e pior, ela também. A ansiedade podia matar nós duas claro, se o resultado dos exames que eu fiz não nós matasse antes
   Contamos os minutos, as horas e os dias que nós separaram dele. Eu não conseguia dormi. Ninguém conseguia. Bem que meus pais tentavam, mas dava pra ouvi - lós conversando durante a noite, sussurrando dores que ficavam escondendo de mim. Nada pior do que ouvir minha mãe chorar baixinho quase a noite inteira e sentir o silêncio angustiado de meu pai.
   Não adiantava ele fingir, fugir da dor por trás de uma fachada de rispidez e mais constante aborrecimento. A dor que sentia aparecia a todo estante, num olhar, num sorriso tolo e inesperado, na falsa confiança de suas palavras e de suas frases feitas.
   Foi apenas um susto.
   Tudo vai acabar bem, você vai ver.
   Há males que vem para bem.
   Frases, meras frases que não apareciam quando estávamos junto na mesa, na sala, diante da televisão. Frase que não resistiam ao silêncio permanente de nossa convivência e não conseguiam esconder o constrangimento nas palavras, principalmente nos pequenos mas altamente significativos gestos de precaução de minha mãe.
   Meu prato, meus talheres. Minhas toalhas. Meu sabonete. Minha escova. Minhas roupas lavadas depois de todas as outras.
   Nada pior do que o embaraço silencioso dos dois diante de mim. Eu era portadora do virus HIV. Tinha AIDS.
   Minha mãe começou a chorar quando o médico começou a recitar todo um cabedal de possibilidades e variantes comportamentais do vírus.
- Você pode nem morrer! - afirmou ele, exultante.
   O meu entusiasmo não foi tão grande. Eu sabia o que me esperava. Não falei muito. Enquanto o médico falava, fiquei pensando em Rubinho. No que ele devia ter sentindo, no que passará, quando o médico lhe disse as mesmas palavras e tentou consolá - lo com um mar de estatísticas estéreis. Imaginei sua angústia. A dor da decepção. O fim dos muitos planos, de um futuro perdido de um momento para o outro. A solidão do fim deve - tê - lo oprimido terrivelmente.
   Não falar com ninguém. Não poder contar para ninguém. Não ter coragem de contar para ninguém.
   Medo.
   A incompreensão como uma presença constante, algo em que ele viveria tropeçando interminavelmente até o último de seus dias. O preconceito empurrando - o para a solidão mais e mais, afastando amigos, gerando incompreensões, causando grandes decepções.
   Um inferno.
   Ninguém poderia jamais culpá - lo pelo que fez.
   Chorei. Não por mim. Por ele. Como ele deve ter sofrido naqueles intermináveis segundos que antecederam seu fim. As dúvidas. A sedução do alívio trazido pela morte.
   Pobre Rubinho...
   Pensei naquele momento. Pensei na morte. Pensei em algumas maneiras de se morrer sem alarde e dor. Cheguei a acreditar que não resistiria àquela doença por muito mais tempo. Sei lá pensei em tanta coisa em tão pouco tempo, enquanto ouvia ou fingia ouvir o receituário de fé e confiança na ciência do médico. Mas de repente, tudo sumiu da minha mente. Coloquei algo mais importante dentro dela.
   Meu filho.

Um sonho dentro de mimOnde histórias criam vida. Descubra agora