3. Vermelho da Cor da Atitude

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A primeira vez que o vejo é cerca de quinze dias depois de já estar na cidade. Seu corpo é esguio e seus cabelos são de um loiro escuro, refletindo o sol que neles bate. Meu vizinho de frente é tão jovem quanto eu e parece uma pessoa tranquila.

Estou no jardim, regando as plantas e completamente sujo de terra após uma tentativa de plantio de mudas, quando nossos olhos se encontram. Ele está voltando do mercadinho, com algumas sacolas na mão e acena para mim do próprio portão.

Confuso, aceno de volta, tremendo um pouco. Ele abre um sorriso e entra em sua casa, aparentemente contente pelo contato.

“Estranho”, comento sozinho para as rosas ao meu lado.

Dou de ombros e sigo com minha tarefa, esquecendo-me por um momento do que havia acontecido.

“Mas quem é ele, afinal?”

2

“Ah, então quer dizer que você já conheceu o Taehyung?”, dona Taeyeon pergunta alegremente enquanto passa minhas compras.

Depois do incidente com o outro cliente, ela veio me visitar e trazer um bolo caseiro. Estava preocupada e queria fazer algo por mim, disse, e me senti tão culpado que me vi obrigado a preparar um café e explicar a situação.

Quando terminei de contar a história, dona Taeyeon, com algum cuidado, segurou minhas mãos geladas com as próprias, enrugadas e pequenas, tentando transmitir conforto. E funcionou. Acabei chorando um pouco, mas me senti tão bem por ter colocado para fora o que estava sentindo que minha tensão para com ela passou.

“A senhora lembra muito minha avó”, lembro de ter dito.

Então ela meio que me adotou, após o comentário.

“É, acho que era ele. Não sei. Ele é meio estranho...? Não achei que fosse me cumprimentar assim”, digo enquanto coloco o restante das compras no balcão.

“É um bom menino. Pode ser excêntrico, mas é um amor e tem muito a oferecer.”

Como não há mais clientes, passamos algum tempo conversando. Ela conta que o marido foi à capital para resolver uma pendência e que se sente sozinha. O filho está fora do país com a esposa, viajando, e, por também me sentir muito sozinho, não vejo mal em convidá-la para outro café da tarde, qualquer dia; nos despedimos, assim, com a promessa de um novo encontro.

“Um café, né?”, sussurro sorrindo.

E por incrível que pareça, minhas sacolas estão mais pesadas que meus ombros.

3

Aparentemente um dos meus vizinhos gosta muito de música clássica. Todo dia, no mesmo horário, peças longas se iniciam, às vezes uma já tocada, às vezes uma nova. Não existe uma ordem, a única coisa que se mantém é a presença quase religiosa da música: sempre das três às seis da tarde.

Nunca fui de ouvir Chopin ou Beethoven, se é que eles se manifestaram no repertório, mas começo a gostar da mudança, adquirindo o costume de ler no sofá nesse período, tomando algum chá de qualquer coisa.

Estou agindo como um idoso, mas pelo menos estou tranquilo.

Certo dia me pergunto se meu vizinho erudito é velho, e, em meus delírios de cantor, imagino-o barbudo e de cabelos tão brancos e brilhantes quanto uma pérola. Certo. Um bom jeito de se envelhecer, não é?

Vermelho da Cor do CéuOnde histórias criam vida. Descubra agora