5. Vermelho da Cor do Contato

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1

Eu sinto falta de muitas coisas. Sinto falta da minha infância, da minha família, do meu antigo apartamento; sinto falta do J-Hope.

Quando me tornei isso? Quando me tornei tão fraco, tão contaminado pela rotina?

Sei que preciso mudar, preciso me esvaziar: me reconhecer, antes de tudo, hipócrita, e aprender a lidar com minhas feras. É claro que certas coisas são mais fortes do que eu, não há o que fazer nesse caso; mas sou invejoso, carente, covarde. Fujo, fujo esperando que meus problemas se resolvam, e acabo me afastando cada vez mais de mim mesmo.

Sou meu próprio inimigo.

Dói demais ter essa consciência.

Esperar não é a saída. Fugir não é a saída. Eu quero me curar de mim, mas a grande pergunta é: será que essa cura existe? Será que há uma forma de voltar a me encontrar?

Foi para isso que vim até Jeonju. Não sei existe meio de lutar contra, mas vou continuar procurando-o por todo o tempo em que estiver aqui.

2

A culpa não é de ninguém além minha, repito; o inimigo sou eu. Taehyung não tinha a obrigação de ter me avisado. O que eu tenho, a minha ansiedade, é um problema só meu, e não devo envolver ninguém nisso.

3

Quando volto à cozinha, o café está pronto e pães e torradas compõem a mesa. Há chá também, e me pergunto onde meu vizinho o achou, desde que o meu acabou alguns dias atrás. O mais surpreendente é que ele cantarola e rebola como se a casa fosse dele, mexendo os braços de forma engraçada, lembrando um dinossauro, enquanto arruma a toalha da mesa. Quem diria, não é?

Ainda que tenso, não consigo segurar a risada. Ele me nota e se vira em minha direção, um bigode branco sobre sua boca - aquilo é leite? -, diminuindo seus movimentos braçais, porém aumentando o rebolado.

"Vem comer! Tô morrendo de fome!", conclui já se sentando em uma cadeira e me aguardando.

Acabo rindo novamente, mais descontraído, e o acompanho. O rapaz abre o pote de geleia rapidamente enquanto corto alguns pedaços do pão que ele trouxe, ansioso; percebo que também estou faminto.

"Você quer café?", oferece.

"Vou tomar chá. Obrigado", sussurro. Embora esteja mais confortável, ainda há um nó em minha garganta.

Quando vou pegar a jarra, porém, Taehyung se precipita e a alcança antes de mim, com um sorriso travesso. Ele a segura por algum tempo, encarando-me. Desvio o olhar, constrangido, e de repente me sinto compelido a me justificar.

"É...", começo, respirando fundo. "Sobre o que aconteceu agora há pouco..."

"Ah!", ele me interrompe. Pulo na cadeira. Meu vizinho leva a jarra até meu copo e o enche, enquanto eu, assustado, só faço fitá-lo. "Nós temos quase a mesma idade, né? Tem problema te tratar informalmente? Um ano de diferença não é muita coisa."

Enrosco-me nas palavras, chocado demais para qualquer coisa. Ele passa geleia em um pedaço de pão e o leva à boca, mordendo-o e encarando-me.

"Jung Hoseok, né? Meu nome é Kim Taehyung!", diz abafado. "É bom te conhecer!"

Ainda com o pão na boca, ele fecha a mão em punho e a empurra até mim, esperando.

Esse menino é doido ou o quê?

Cuidadosamente completo o cumprimento, estranhando totalmente a reação dele. Evitando o assunto... Enquanto ele volta a comer, observo meus dedos e me pergunto por que não, afinal. Por que não, Hoseok?

Nem tudo precisa ser explicado.

Finalmente beberico um pouco do chá, mais tranquilo. É. Talvez não seja de todo ruim, certo?

"É bom te conhecer também, Kim Taehyung."

4

"Eu nunca comi uma geleia tão gostosa na vida, acredita? Foi você quem fez?", ele pergunta após algum tempo de conversa. "Sério, é tipo a melhor coisa do planeta!"

Ainda estou tímido, mas já consigo falar um pouco mais alto. O receio foi embora há alguns minutos, com o quebra gelo do rapaz, e agora, mais solto, sinto-me ligeiramente confiante. A presença dele não me incomoda mais e, por mais estranho que ele seja, é uma pessoa divertida. Não me importaria em passar o resto do dia em sua companhia, se fosse o caso.

"Minha mãe quem preparou. Eu só sei cozinhar o básico para sobreviver", admito sorrindo, tomando mais um gole de chá.

"Nossa, eu juro, juro mesmo, sua mãe só pode ser uma espécie de deus!", exclama. Os olhos arregalados e o canto da boca sujo de vermelho tornam a situação tão fora do comum que não consigo ficar sério, gargalhando e quase me engasgando com a bebida.

"Ela é!"

Continuo rindo por algum tempo. Pelo canto do olho, vejo Taehyung abrir um sorriso simples, como se tivesse cumprido uma missão e estivesse orgulhoso, mas não sei se é real ou obra da minha imaginação, pois, quando volto a encará-lo, ele já está com um novo bigode branco e eu choro de rir.

Ele é uma pessoa especial. Quero muito conhecê-lo ainda mais, se tiver a oportunidade.

5

A chuva para conforme a tarde avança. Continuamos conversado e, quando noto, já escureceu. Taehyung agradece pelo tempo e diz que precisa ir.

"Foi divertido. Apareça em casa, na próxima vez!"

Ele acena e tenta não escorregar no asfalto molhado, andando com cuidado, um passo de cada vez, até alcançar o próprio lar.

E estou sozinho novamente.

6

Sentando-me no sofá, tenho a impressão de que tudo não passou de um sonho. A cozinha arrumada, tudo em seu devido lugar, o chão da sala seco e é como se eu tivesse vivenciado nada mais do que uma ilusão.

Quando eu teria coragem de receber alguém desse jeito? Como eu aguentaria?

Mas eu tive coragem. Eu aguentei.

"Você foi forte, Hoseok. Não se deixe sabotar", ouço.

A maior prova de que passei por tudo e sobrevivi é o piano, que agora fala comigo em um tom afável. Sua bela tampa está aberta e ele parece reluzir, como se tivesse sua energia renovada. É a primeira vez em que dou ouvidos ao meu companheiro.

Fui forte, é? Acho que sim.

Um passo de cada vez. Algum dia eu chego lá.

7

A noite é fria e, sob as cobertas, encolho-me um pouco mais. Estou exausto. Querendo ou não, o que passei hoje significa que me encontrarei com meu vizinho novamente, que conversaremos e, quem sabe, passaremos outras tardes juntos.

Talvez viremos amigos.

Estou um pouco assustado com a possibilidade.

Mesmo assim me sinto animado, feliz o suficiente para ter pequenas explosões internas, em uma emoção que sou incapaz de controlar. Sorrio para o nada, de olhos fechados, permitindo-me relaxar.

A visão que tenho é de um sorriso quadrado que espero tornar mais frequente a partir de agora.

A noite é fria, mas meu coração se aquece com a lembrança. Calor, assim como a personalidade de Taehyung.

"Foi realmente bom te conhecer."

Estou feliz de verdade.

Vermelho da Cor do CéuOnde histórias criam vida. Descubra agora