Capítulo II

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Ela sussurrou no meu ouvido durante todo o trajeto.

- Vire à direita- ela dizia, e os pelos da minha nuca se arrepiavam.

-Agora à esquerda- e a única coisa da qual eu tinha consciência era das mãos dela ao redor da minha cintura, do seu corpo junto ao meu, do calor que emanava do corpo dela e aquecia o meu.

A viagem parecia não acabar nunca, e eu podia jurar que aqueles minutos com ela na minha garupa foram eternos, mas tão rápido quanto subiu, ela desceu da moto, foi assim que eu me dei conta que tinha parado, em frente a minha própria casa!!

- Você me trouxe até a minha casa? - perguntei, percebi que pergunta soou meio idiota depois que saiu da minha boca.

- Cara, como é que eu vou te levar até a sua casa se eu te conheci hoje cedo?- respondeu ela, rindo pra valer da minha cara. - Eu moro aqui- e apontou para a casa da Dona Mariana - quer dizer, moro aqui desde ontem á noite...e se eu moro aqui e você mora ali, então você só pode ser o vizinho gato e carrancudo que a minha vó estava falando hoje cedo...

-Eu sou o que?-interrompi ela.

- Gato e carrancudo, palavras da vovó, juro!- disse ela com um sorriso.

Dona Mariana saiu porta afora, provavelmente por que ouviu as altas gargalhadas de Isabella.

-Bella, minha querida, já voltou? Achei que ia chegar um pouco mais tarde- perguntou.

- Eu ia vovó, mas roubaram minha bicicleta- respondeu Isabella, dando um beijo na vó.

- Roubaram? Ah minha querida, você está bem? Te machucaram?

-Não vovó, na verdade eu nem vi, quando saí da biblioteca a bicicleta não estava mais lá. Mas tudo bem, por que o Felipe aqui tem uma parcela de culpa no ocorrido e como a gente trabalha no mesmo lugar ele me ofereceu carona, não é Felipe?- respondeu ela com um sorriso escancarado.

- Eu...ah...- tentei responder.

- Ah Felipe querido que bom que você ajudou Isabella- respondeu Dona Mariana vindo na minha direção e me dando um beijo na bochecha- ela é meio atrapalhada sabe, puxou a mãe eu acho- cochichou ela no meu ouvido- Mas estou feliz que vocês já se conheceram, e vão trabalhar no mesmo lugar! Que benção! Assim Isabella não fica tão perdida.

- Eu não fico perdida vovó- respondeu ela.

-É claro que não querida!-respondeu Dona Mariana dando uma piscadinha pra mim- não quer entrar e tomar um café Felipe? Acabei de assar uma leva de biscoitos!

-Não, obrigada, tenho que terminar alguns trabalhos- respondi.

- Tudo bem, mas se quiser vir mais tarde fique á vontade, vou guardar um pouquinho da sobremesa pra você- respondeu Dona Mariana se virando e levando a neta junto.

-Carrancudo! - ouvi Isabella sussurrar de forma bem audível, acho que ela gostava de me provocar, ou só era chata mesmo, pensei.

- Eu ouvi isso - respondi- e não sou carrancudo!

- É sim, meu querido, e você sabe disso, não negue- respondeu Dona Mariana quando tentei responder- Mas é a verdade Felipe, e a verdade sobre alguém é sempre mais bonita do que a mentira.

E com essa ela se afastou e entrou em sua casa com Isabella a tiracolo, a porta se fechou e eu fiquei parado, tentando entender tudo aquilo e principalmente tentando achar uma resposta racional do por quê eu ainda sentia as mãos quentes dela na minha cintura.

Com a cabeça sei lá onde, segui em direção a minha casa quando Isabella atravessou o jardim correndo na minha direção:

- Hei, esqueci de te perguntar a que horas a gente sai amanhã, eu saí mais cedo hoje por que estava de bike, mas você deve sair mais tarde né, a moto é definitivamente mais rápida que uma bicicleta, mas isso você já sabe, lógico. Mas eu até gostava de andar de bicicleta, uma pena que roubaram, agora vou ter que ir com você até juntar grana pra comprar outra, mas em todo o caso a culpa meio que foi sua né, porque você podia ter sido mais gentil. Bom, de qualquer forma não custa nada você me levar né, você vai pra biblioteca de qualquer jeito e seria muito egoísmo da sua parte não me levar. Mas se você quiser eu ajudo na gasolina até poder comprar uma nova bicicleta, por que eu gosto mesmo de pedalar sabe, enfim, o fato é que eu falo muito quando eu fico nervosa, você se acostuma aos poucos, mas enfim, que horas a gente sai?

- Ahh...acho que as oito está bom- respondi meio perdido, confesso.

- Te espero aqui em frente então- respondeu ela e saiu andando.

- Hei- gritei sem pensar- por que você você tá nervosa?

- Sabe que eu não sei? Mas eu nem sempre sei de tudo - respondeu ela de longe pensativa, fechando a porta atrás de si.

Entrei em casa e fui direto para o meu quarto, as janelas estavam fechadas com sempre, meu pai havia desistido de abri-las contra minha vontade há alguns meses atrás. Tomei um banho rápido e me joguei na cama, procurei pelo meu caderno em meio aos lençóis e peguei a caneta de cima do criado mudo.

Eu vinha escrevendo há meses, desde que ela havia me deixado. As palavras fluíam com facilidade, a caneta corria sobre o papel e a minha história tomava forma cada vez mais. Não era um história feliz, confesso, mas era a única que eu fui capaz de criar.

Talvez minha decepção e dores estivessem sendo transferidas para o papel a cada vez que eu me dedicava à escrita, mas o fato é que dentro do meu peito parecia ter um manancial infinito desses sentimentos porque a dor não diminuía, a angústia não passava e as memórias pareciam cada vez mais vívidas dentro da minha cabeça.

Minutos se passaram, talvez horas, as letras eram transferidas para o papel e a infeliz história tomava um rumo cada vez maior, meus personagens enfrentavam um destino mais parecido com o meu a cada frase, a cada parágrafo.

Meu inconsciente registrou que meu pai havia chegado através dos barulhos habituais, a água do chuveiro correndo, as colheres batendo nas panelas enquanto ele fazia a janta, a louça sendo lavada e os seus passos até o meu quarto. Baixei a caneta no exato momento em que ele deu duas batidinhas na porta e a abriu:

- Filipe, tô indo na casa da Dona Mariana, quer ir? Tem pudim!

- Não, valeu pai. Vou terminar esse capítulo e ir dormir.

-É claro...só come alguma coisa antes de deitar, tem comida na geladeira.

-Obrigado...ah! manda um beijo pra Dona Mariana.

- Pode deixar- respondeu ele fechando a porta atrás de si.

Eu percebia a tristeza nos olhos do meu pai a cada vez que ele me chamava para algo e eu recusava, mas eu não podia evitar, eu não tinha mais forças, mais vontades, desejos. A única coisa que fazia meu coração esquecer o passado eram os livros, a biblioteca, e quando chegava em casa, o meu livro que esperava, minha cabeça estava desesperada para fazer sair toda aquela tristeza em forma de escrita, e foi o que eu fiz.

Peguei o meu caderno, a caneta e voltei a fazer a única coisa que me despertava algo bom.





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