Sobrevivente

Capítulo VI

-Eu lavo, você guarda- disse ela me estendendo o pano de prato com um meio sorriso.

-Você também está metida nisso? - Indaguei contrariado.

-Nisso? Dá pra você ser um pouquinho mais específico? "Nisso" envolve bastante coisa sabe- respondeu ela displicente.

-Nesse plano, ora! De juntar nós dois, não vai me dizer que você não percebeu?

- Até que percebi sabe!- ela largou um prato na pia - Mas eu evito contrariar minha avó, além disso você não faz o meu tipo!

Ela disse a última parte rindo, muito. Eu me senti levemente ofendido.

-O que há de errado comigo?

-Tudo!

- Dá pra ser um pouquinho mais específica? " Tudo" também envolve bastante coisa!

-Bom, eu não estou falando da sua aparência, se é isso que você está pensando, você é gato,  quer dizer, quando você joga esse cabelo as garotas devem querer se jogar em você e também tem o lance da moto, sabe. A jaqueta de couro e os coturnos te deixam bem atraente, mas você já sabe disso.

-Não, eu não sei, e ninguém se joga em cima de mim não!- senti uma pequena necessidade de dizer isso a ela-  E a atual dona da minha jaqueta tem sido você, já que você parece incapaz de trazer a sua própria!

Ela só balançou os ombros como uma criança e deu continuidade à sua fala, como se a minha mísera tentativa de explicação bem estivesse saído da minha boca.

-Como eu estava dizendo, não é a sua aparência e sim o seu espírito.

- Como assim?

- Oras, você é triste. Dá pra ver nos seus olhos. E antes que você fale alguma coisa, não, vovó não me contou nada, mas eu notei. Ela não é a única que consegue ler as pessoas.

- Talvez você não tenha passado pelo que eu passei.

- Não, eu não passei, mas isso não significa que a minha vida tenha sido um mar de rosas. Todos nós carregamos a nossa cruz, e ela deixa marcas, o peso nunca sai realmente das nossas costas, mas  como tudo na vida, isso passa.

- Mas eu não consigo esquecer - foi tudo o que eu consegui responder, depois lembrando dessa conversa, percebi que eu abri um pouco do meu coração com aquelas cinco palavras.

- Mas você não precisa esquecer, você só precisa se dar conta de que o passado, os acontecimentos e principalmente as pessoas que estavam com você naquele momento e as atitudes que elas tomaram não podem ditar sua vida, não podem tirar o seu rumo, não podem definir o seu futuro.

- Não é tão fácil quanto parece.

- Não é, disso eu tenho certeza.

Eu não soube o que dizer, e aparentemente nem ela. Ficamos em silêncio pelo que pareceu uma eternidade. Continuamos a lavar a louça, no modo automático e quando me dei conta a cozinha estava limpa, mais limpa do que já esteve um dia. Ela se afastou da pia e eu entendi o pano para que ela secasse as mãos, foi então que notei que a blusa que ela usava estava toda molhada na barriga.

- Se você quiser eu te empresto uma camisa.

- Hã?- ela parecia distante.

- Uma camisa, você tá toda molhada- respondi apontando para a sua blusa molhada.

- Ah, claro, eu sempre me molho toda quando lavo a louça, não sei te dizer o porquê.

- Vem comigo então - fui em direção ao meu quarto. Ela parou de repente, parecendo repensar a minha ideia.