Capítulo IV

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Escutei seus passos atrás de mim, os saltos das suas botas ecoaram nos meu ouvidos enquanto eu dizia a mim mesmo que ela era só uma colega de trabalho que por acaso também era minha vizinha e que  eu estava sendo um tanto infantil fugindo dela como diabo foge da cruz, ela era só uma garota, nada mais que isso.

-Hei, me espera- seus dedos tocaram os meus ombros e eu estremeci- eu vou com você né!

Diminuí o passo e fingi um sorriso.

-Então, quem quebrou seu coração e te deixou assim?- ela questionou.

- Assim como?

-Assim, todo pra baixo, de cara feia, janelas fechadas e diários secretos.

-Eu sou assim e isso não é da su...

-Ah você não é assim não, impossível uma pessoa como seu pai criar alguém como você, isso é resultado de coração partido, sabe.

-Primeiro, eu não tenho tempo de abrir a janela todos os dias, segundo, aquilo não é um diário, é um manuscrito, um livro que eu tô escrevendo e terceiro, eu não acho que devo explicações à você.

-Acho que você tá certo, me desculpe por perguntar coisas tão pessoais, mas é que a minha curiosidade vence o meu bom senso, e além disso você transpira tristeza, e se você deixar ela se apodera da gente, toma conta da nossa mente até chegar no coração, e ele esfria, vira uma pedra de gelo, e na minha opinião, isso é a pior coisa que pode acontecer a alguém.

Embora quisesse, não soube como respondê-la, ela estava certa, sobre a tristeza e principalmente sobre o coração gelado, ela só não mencionou a falta de cores, as tonalidades de cinza que faziam do meu mundo cada vez mais sem graça...exceto pelos seus lábios vermelhos.

- Então você nunca se sentiu triste?-arrisquei uma pergunta pessoal, precisava saber mais sobre ela.

- É claro que já bobinho, eu sou humana sabia! Eu passei por algumas coisas, digamos assim- o sorriso dela morreu aos poucos e seus olhos perderam metade do brilho- eu cheguei ao fundo. e foi quando eu estava lá, vendo a luz só de longe que eu percebi, eu notei que aquela não era a vida que eu sonhei, que eu queria. Então eu tomei impulso e pulei, fui em direção a luz, por assim dizer e resolvi mudar, então passei o batom vermelho e vim pra cá.

Ela olhou na minha direção e sorriu, suas covinhas apareceram e eu sorri em resposta, sorri de verdade, como há tempos não sorria, notei.

- Você fica tão lindo quando sorri- sussurrou ela me fitando, seu olhar parecia ver além de mim, e então ela disfarçou- Mas essa conversa é bem baixo astral né,então vamos mudar de assunto, que tal falarmos sobre música? Do que você gosta?

Eu quis perguntar a ela o que a tinha feito sofrer tanto, ou "quem" a tinha feito sofrer tanto e o que o batom vermelho tinha a ver com isso, mas me contive, minha natureza introvertida falou mais alto e eu me limitei a responder apenas o que me foi perguntado, como sempre.

- Eu gosto de rock, talvez um pouco de pop, mas rock em primeiro lugar, definitivamente, e você?-me atrevi a perguntar.

- O mesmo que você, eu acho, estou tentando me redescobrir, então ainda não tenho muita certeza das coisas.

-Certo, e quanto a filmes?Do que você gosta?

-De tudo um pouco, prefiro os que tem finais felizes, os que me fazem rir, adoro um terror trash sabia? Daqueles bem clichês e cheio de cenas bobas que ao invés de assustar fazem a gente se acabar de rir de tão previsível, e quanto a você.

-Eu gosto de...na verdade não sei do que eu gosto, agora que parei para pensar, notei faz um bom tempo que eu não assisto a um filme.

- A gente pode resolver isso, que tal um cinema no fim de semana?- perguntou ela um tanto animada demais.

-Eu não sei, talvez...então, você está preparada para a montanha de livros que vai chegar na semana que vem?- desconversei.

-Acho que sim!?

-Você acha?- ri com o desespero que apareceu nos olhos dela.

-Ah Felipe, não enche, eu nunca trabalhei numa biblioteca antes poxa!

- Mas você está indo bem, é sério, geralmente o pessoal que aparece por lá não dura dois dias.

- Eu estou me esforçando, preciso do emprego, além disso, eu gosto dos livros, do cheiro, então não é sacrifício nenhum trabalhar lá.

- Concordo com você, aquele lugar é maravilhoso, eu não poderia ter um emprego melhor, fico perto das melhoras coisas que o homem já inventou e ainda ganho para isso!

- A minha parte preferida são as crianças, adoro quando os olhinhos delas brilham quando elas vêem aquela imensidão de livros, as prateleiras altíssimas repletas de histórias, de mundos, de aventuras. Acho que me faz lembrar eu mesma quando criança, a primeira vez que entrei numa biblioteca e vi a grandiosidade dela, foi a vovó que deu o meu primeiro livro sabia?

- Interessante! Não sabia que Dona Mariana gosta de ler...

- Talvez ela não seja boa em ler livros, mas ela nunca erra ao ler uma pessoa, ela acertou sobre você!!- ela replicou com um sorriso displicente.

- O que ela falou sobre mim? - perguntei, não gostava muito de imaginar as duas falando sobre mim.

- Ela não disse nada que eu não tenha notado, mas não se preocupe, o "fator" coração partido foi eu que descobri, vovó não ia me falar de uma coisa séria assim, ela é bem leal sabe.

- Não sei se eu fico feliz ou triste com essa informação.

- Não se preocupa, a gente fala de outras coisas também, não só de você- ela riu com vontade.

Mas se ela sabia sobre mim, eu precisava saber sobre ela também, era uma necessidade. Resolvi me atrever a perguntar.

- E quanto à você? O que a fez vir para esta cidadezinha e trabalhar numa biblioteca?

Ela se calou por um segundo.

- Eu queria ser eu mesma, queria ser a garota da vovó, queria ser livre, queria ser exatamente assim, como você está vendo, sem amarras.

- E o que a impedia de ser assim antes?

- Não o quê...-seus olhos se abaixaram por um segundo - Hei, chegamos ao posto de gasolina- bradou ela e saiu correndo na frente, interrompendo meus pensamentos.

Abastecemos rapidamente e ela insistiu em pagar, tentei argumentar até perceber que ela estava disposta a vencer, então aceitei o dinheiro, ela sabia ser teimosa quando queria, percebi.

Ela subiu na moto e envolveu seus braços ao meu redor de forma tão natural e eu me questionei se ela não notava a forma que eu estremecia sob seu toque. Seguimos caminho e chegamos em casa na mesma hora do meu pai.

Ele me fitou e em seguida seus olhos passaram a observar Isabella que tirava os braços que estavam em volta de mim e descia da moto:

- Até amanhã Felipe- disse ela sorrindo- Vou correr porque vovó deve estar preocupada comigo! Boa noite Sr. Joaquim- acenou ela ao ver meu pai e saiu em disparada.

Meu pai não disse nada quando eu passei por ele, mas notei uma série de perguntas passando por seus olhos, resolvi fingir que nada de mais havia acontecido e fui para dentro de casa, onde segui meu ritual, banho, algo para comer, caderno e caneta. Fui até a gaveta e tirei de lá meu caderno, lembrei dos olhos curiosos de Isabella sobre ele, peguei uma caneta e assumi minha posição habitual sobre a cama.

Esperei a enxurrada de sentimentos tristes se transformarem em palavras, como sempre, mas eles não vieram.

Havia algo de errado dentro de mim.









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