— Tu sabia que quando a gente faz massagem cardíaca o ritmo dela tem que ser no de Stayin' Alive? — falei pra Vitória. Estávamos deitadas sobre um pano xadrez no nosso ponto de encontro particular em Araguaína. O céu estava límpido, azul. O sol enternecia nossos corpos e o vento do verde nos lavava os pulmões.
— QUÊ? — ri com aquele espanto de criança — A música do Bee Gees?
— Sim!
A gargalhada estrondosa dela preencheu todas as dimensões e reverberou no meu peito enquanto meus olhos pousavam naquele sorriso largo de menina. Sem perceber, minha boca se curvava do mesmo modo, espelho dela.
— Eu t-tô imaginando tu dando uma massagenzinha na pessoa, daí tu aponta o dedo pro outro lado e volta pra massagem, tipo aquela dancinha típica dos anos 80, saca? — ela se entregou ao riso pleno, fazendo o movimento que acabava de descrever. — Ah! Ah!Ah!Ah!Ah! Stayin' alive, stayin' alive. Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Stayin' aliiiiiiiiiiiiiiiiiive...
Minha gargalhada, mais contida, se misturou à dela. Passei a imaginar a cena também e era extremamente cômico o jeito com que Vitória encenava tudo aquilo, além do deleite de perceber que a minha presença a alegrava de alguma forma.
— Fazer o movimentozinho seria massa, mas isso faria de mim uma médica lastimável. Depois que o paciente acordasse, eu deitaria ao lado dele e cantaria o resto da música junto, acho que seria um pouco mais ético.
— Que sorte a desse sujeito, ser atendido por tu. Queria ser ele. — ela falou, me fitando.
Estávamos de lado, uma de frente pra outra. A pele de leite não escondia que o rosto dela continuava ruborizado pela contração dos músculos da região. Os olhos, claros e feito galáxias gêmeas, pareciam saltar quando estavam assim tão perto dos meus. De repente, o ar filtrado pelo corpo dela passou a alimentar o meu. À medida que nos aproximávamos, minha visão se encerrava lentamente e a última imagem que capturei foi a dos lábios dela: meio abertos, meio fechados, os dentes semi-escondidos e a língua totalmente oculta, a qual eu só enxergaria pelo tato quando tocasse a minha.
Cama macia e lençóis alvos, manhã anil.
Acordei sentindo um grande pesar que não soube distinguir no primeiro momento por conta da névoa de sono. Abri a janela do meu quarto e deixei a brisa de orvalho entrar, fazendo meu corpo estremecer com o leve choque térmico. E o tremor se converteu em choro.
Choro abundante e quieto, choro de... amor?
Lembrei o sonho, pude reproduzir todas as sensações que tive durante o mesmo: o cheiro de girassol que emanava dela, o riso afastando meus fantasmas, meu coração em descompasso e o sol nos concedendo sua benção. Existíamos ali em um mundo sem regras morais, éramos pura natureza, onde não havia convenções. Apenas existíamos.
Sinto, logo existo.
Havia tantas (im)possibilidades pra nós duas, como eu poderia me render a algo do tipo? Eu em Minas, ela em Sampa; eu na convenção de uma profissão da saúde, ela na alma entregue a um ofício artístico; eu a querendo só pra mim, refém de velhos contos românticos e manteiga sentimental.
É, admiti pra mim mesma: eu a queria, mais do que palavras poderiam expressar. Mas Vitória era do mundo, filha e amante dele. Cada pequeno pulsar de vida a encantava, ela não canalizava a admiração em um único ponto por vez como eu, muito pelo contrário. Ela era livre, alçava voos tão enlevados quanto os próprios sonhos de algodão doce.
Vi já havia compartilhado comigo sua rejeição a relacionamentos tradicionais, os achava sufocantes, por isso nunca esteve em um, além do fato de não ver sentido em se amar uma única pessoa em um mundo com 7 bilhões de exemplares únicos.
Então percebi que estava amando um passarinho e tudo o que poderia lhe oferecer era um amor-gaiola que, quando o capturasse, o faria triste e seu canto cessar. Era tudo o que eu menos queria.
Peguei meu caderno de anotações, em que escrevia qualquer ideia aleatória pra depois a transformar em música. Ou descartar mesmo. Eu sentia nada menos que uma necessidade imensa de registrar meus estados de espírito dessa forma desde que aprendi a tocar violão.
Se tu não quiser ficar
Te canto todos os dias
Todas as alegrias
Que não vamos compartilhar
Juro não mais tentar te encontrar
Dar-te o espaço pra me apagarÀs vezes a coisa parecia vir psicografada, com as palavras certas. Não sabia o que faria com esse encerto por enquanto, mas aquelas frases expressaram exatamente meu plano doloroso: se não fosse correspondida, sumiria da vista dela. Eu não aguentaria a ouvir falar de outras pessoas, as possibilidades de felicidade são egoístas, como diria Cazuza. Pelo menos as minhas.
Eu não a aprisionaria em qualquer companhia minha, tinha medo de ter crise de ciúmes sem motivos, brigar sem razão. Dando tudo errado, o sofrimento era certo, então que pelo menos eu fugisse antes de fazê-la se sentir culpada por algo sobre o qual não tem controle. Assinei meu contrato de expiar sozinha com lágrimas:
(Não me deixa cumprir. É só não ir)
Escrevi como que uma súplica embaixo da estrofe. Fechei o caderno, me sentia fraca demais pra pegar o violão, apesar de aquele amanhecer estar sendo tristemente inspirador. Ao invés disso, peguei o celular e li nossas últimas mensagens. Ver aquela foto e aquele nome me fazia me sentir bem de alguma forma, assim como mal.
Vitória havia voltado a São Paulo há três meses, tempo que eu também voltei para Araguari, afinal, as férias tinham acabado. Conversávamos todos os dias, o dia todo, em todas as redes sociais. Quando tínhamos tempos compatíveis, nos ligávamos — meu tipo de contato preferido. Porém, as madrugadas dos finais de semana eram quando tudo se intensificava, isso quando ela não ia pra balada. E mesmo indo, não deixava de compartilhar nada comigo.
Vitória Falcão - 3:00 AM
mas essa de stayin alive foi foda!
tô rindo até agora imaginando tu fazendo a dancinha 💃💃💃Ana Clara Caetano - 3:00 AM
aposto que tu tá toda vermelhinha
confesso que acho muito fofo 🙊Vitória Falcão - 3:01 AM
ah, é? 😍😍😍😍Ana Clara Caetano - 3:06 AM
é... tu fica parecendo uma pitanga 🙈
mas vem cá, hoje não rolou baladinha top não?Vitória Falcão - 3:06 AM
té me convidaram, minina, mar eu num quis ir não
preguiiiiiça... 🎈
e eu prefiro falar com tu 💖Ana Clara Caetano - 3:10 AM
oxe! assim tu me encabula todinhaVitória Falcão - 3:10 AM
confesso que acho fofo 😉😉Ana Clara Caetano - 3:14 AM
aaaaaaaaaaaaaaaaaaa meu deus, temos aqui uma P A I A Ç A
olha só, eu vou dormir que amanhã é sábado mas vou ter que passar o dia estudando pra prova de segunda
beijo pra tu e um xêro 😘Vitória Falcão - 3:14 AM
aprendi com tu
xêro, ninha ❤❤
e lembra que tu me deve uma
sonhei contigo hoje, então agora tu sonha comigo, tá? ✨Ana Clara Caetano - 3:16 AM
vou fazer o que posso hahahahahaVitória Falcão - 3:16 AM
vou insistir até tu sonhar
descansa e até amanhã, pinxeja! 👸Ana Clara Caetano - 3:17 AM
beijo, pitanga ❤Mal ela sabia que eu não precisava dormir pra sonhar com girassóis.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Origami
FanficA vida é um papel que vai sendo moldado pelas mãos do destino conforme nossas decisões e encontros. Somos a forma de nossas várias histórias, feito um origami. Observações: - Fic do duo Anavitória - Narrada pela Ana - A estória é uma mistura entre o...