Formas

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O céu de São Paulo parecia sufocado por aquele bando de espetos de concreto que se erguiam do chão igualmente duro. Apesar de estar mais perto dele, devido à altura de onde eu me encontrava, havia essa compensação. Da janela do apartamento da Vi, inspirei o ar urbano lentamente observando o crepúsculo do entardecer dessa sexta.

Era o que acontecia comigo. Minha breve estada na capital financeira do país me permitia compartilhar momentos bônus perto do meu pedaço de sol, Vitória, ao passo que isso duraria por somente uma semana. E grande parte desses momentos infelizmente não seria com ela.

Assim que voltei das férias em Araguaína ano passado, recebi uma proposta de bolsa de iniciação científica na faculdade, a famigerada IC. Eu havia me dado muito bem com uma certa professora e ela pareceu me curtir também. Ela me falou por cima sobre a sua linha de estudo, diretamente ligada à pediatria (já comecei a gostar daí, amo esses serezinhos) e sobre como o grupo atuava: reuniões mensais em que cada aluno demonstraria, por meio de um seminário, como estava o andamento de seu trabalho. Pro pessoal da pós-graduação não seria diferente.

Confesso que a ideia de seminários, principalmente pra pessoas mais capacitadas que eu, me assustava. Imagina se o povo do mestrado e do doutorado começa a me achar uma boba lá na frente? Mas levei pouco tempo pra perceber que a galera da pós sofre tanto quanto a gente da graduação, que dizer, até mais; então eles sabem das dificuldades, a maioria veio da IC, e todos são deboinhas. Embora estivesse bem no começo do curso, achei que seria uma vantagem pra aprimorar minha timidez, as técnicas de pesquisa e até pra escrever um TCC lá na frente. Porém havia um motivo maior: a possibilidade de viajar pra congressos ou eventos do tipo e um deles de repente ser em, hum, São Paulo?

E cá estou.

O congresso começaria segunda e eu cheguei em Sampa sábado de manhãzinha. Assim que terminei minhas obrigações na faculdade sexta, passei na república apenas pra me despedir do pessoal que mora comigo e pegar minhas coisas previamente arrumadas pra viajar. Felizmente sexta tenho menos aulas e, após o almoço, fiz uma visita breve na sala da minha orientadora pra acertar os últimos ajustes. A ansiedade tomava conta de mim e em nenhum momento era por causa do meu trabalho.

Toda aquela rotina cega, as obrigações massacrantes, umas festinhas aqui e ali com a galera e a distância física dela me faziam sentir engessada. Sentir o cheiro de Vitória, ouvir seu timbre ao vivo me fez enternecer no meio do aeroporto. É como se ela pegasse o meu coração e o embalasse como a um bebê. Eu só me sentia viva quando nos víamos nas férias, então ter esse extra no meio de um semestre me renovou as energias pra terminá-lo mais adiante. Será que ela tinha uma mínima noção do efeito que causava em mim?

No sábado que cheguei, acabei passando a manhã obviamente dormindo; à tarde, Vitória me levou pra passear pela cidade e conhecer todos os pontos que me levariam ao local do evento, bem como me virar por lá. Toda preocupada e linda.

Depois fomos a diversos lugares, fizemos bagunça no apê dela e o ciclo se repetiu no domingo, incluindo uma reforçada sobre como chegar ao congresso, pra que segunda eu estivesse bem preparada. Vitória recusou umas baladas pra ficar comigo, disse que era um momento único e que queria aproveitá-lo ao máximo. Meu coração quase sai do peito.

Porém tudo passou rápido demais e segunda chegou num piscar de olhos, o mesmo ritmo que levou a semana toda. Eu mal falava com Vitória, chegava exausta no apartamento, praticamente só pra dormir porque passava o dia inteiro no centro de convenções, entre workshops, palestras, minha própria apresentação de painel e curtindo com meus amigos nas proximidades. Ela ficava no outro lado da cidade direto no teatro e, quando chegava, virava a noite em meio a vários textos espalhados pelo chão, estudando, pesquisando qualquer coisinha nova que descobria, aprimorando técnicas e ensaiando as falas que precisaria gravar. Era uma paixão sem precedentes.

— Nhenhenhenhém! — Senti uma cafungada forte no pescoço, umas mechas do cabelo da Vi aparecendo na minha visão e seus braços fazendo uma corrente em minha cintura.

— AAAAAAAAAAH! VITÓRIA! Que susto, véi! Tu quer me derrubar daqui da janela?! — Minha voz expressava indignação. Virei, iria dar mais um sermão, mas não resisti e ri daquela cara de gato que arranha e esconde as garras. Nas pontas dos pés, a abracei pelo pescoço e depositei um beijo-cheiro em sua bochecha. — Ué, mas já?

— Já, mulher. Quero aproveitar com tu esse resto, sabe? A gente mal teve tempo uma pra outra, tu só chegava cansada, eu também e tu já vai amanhã... Pedi pra sair mais cedo. O evento encerrou há muito tempo?

— Nem... Eu cheguei ainda agora. Só fui tomar um banho, comi uns cookies e vim aqui apreciar esse fim de tarde. Mas, ó, eu fico feliz que tu tenha pensado em mim e tal, só que tu não cancelou nada importante, né, Vitória? Pelamor.

— Ô, Ninha, cê acha que eu ia cancelar coisas importantes causa de tu? Claro que sim, né! — Abri a boca pra questionar, mas ela me cortou logo — Xiu! Sou muito aplicada lá, nunca falto nada. Eles me deviam um desconto. — Tentei questionar novamente sem sucesso — Agora vou tomar um banho, um banho especial, pra relaxar. Wescley me chamou pra sair com ele, eu vou tomar um banho bem especial e vou ficar bem bonita pra ele hoje, vou ficar bem cheirosinha pra ele.

Não tive mais o que falar. Vitória era a rainha dos memes e aquela imitação da Zuzu acabou comigo. Tenho quase certeza de que o povo da rua, lá embaixo, podia ouvir minha gargalhada.

— Ai, meu deus, que que num faz a falta dum cleme. — Ela disse, pegando no próprio cabelo.

— Vai logo, palhaça. Só quero saber pra onde nóis vai.

— Pra sala. Comprei um vinho e a gente pede comida, a não ser que tu queira sair. Mas eu conheço sua pessoinha, que gosta de sossego depois de tanto tempo na rua.

— Pois acertou em cheio. E eu também não tenho roupa.

— Realmente, vive pelada essa menina, que nem as moça da Playboy.

Melhor que qualquer lugar do mundo era ficar só com Vitória. Pedimos comida no delivery — eu, sushi; ela, vegetariano — e passamos a noite a beber, cantar, ver filme, filosofar. Coisas simples, mas que com ela atingiam uma outra dimensão. Especialmente também porque já estávamos bastante alteradas.

— Ana...

— Que foi, Vi? — Falei de frente pra mesinha de centro tentando, em vão, botar vinho na minha taça. Olhei pra garrafa vazia e dei uma risadinha ébria. Virei pra ela ainda com o sorrisinho besta no rosto. Vitória me observava perto demais, meio séria e com o corpo totalmente voltado pra mim sobre o sofá.

Só percebi quando meus olhos automaticamente se fecharam.

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