De repente, o gosto. E o calor.
Eu mal podia acreditar no que estava a acontecer, mas não me permiti pensar muito, afinal, sempre faço isso e consequentemente acabo por estragar os momentos. Deixei fluir: o beijo, o coração, o sangue nas minhas veias que se transformava em turbilhões de formiguinhas agitadas, correndo pelos meus membros.
Vitória me beijava calmamente, porém com certa intensidade. Minha cabeça girava, não sabia ao certo se era por causa do contato mais íntimo até então com alguém que amava violentamente ou do vinho, cujo o número de garrafas havia triplicado quando decidimos que um só exemplar não seria suficiente e descemos pro mercado mais próximo entre gargalhadas espalhafatosas.
Num estalo, percebi que estava paralisada quando a senti me dando leves apertos na cintura, então levei minhas mãos por entre os cachos até sua nuca. Acariciei o local enquanto sua língua fazia o mesmo com a minha. Eu poderia explodir ali de tanta felicidade. De modo a me denunciar, soltei um suspiro sôfrego. Vitória riu baixinho por entre o beijo, finalizando-o para o meu pesar. Aquele risinho meio rouco de mulher me eletrizou, avancei para os seus lábios com um selar veemente e ela nos separou com uma mordida seguida duma puxada de leve no meu lábio inferior — o que só me deixou com gostinho de "quero mais".
Ela se aproximou de mim, encostando nossos rostos. Eu só conseguia estampar um sorriso de satisfação imenso, a me derramar naqueles lábios cor de salmão.
— Eu já tô com saudade de você, Ana.
Meu coração apertou ao lembrar que no dia seguinte cedo eu partiria num avião. Pulei pra cima de Vi, num abraço apertado a fim de lhe imprimir tudo o que eu queria dizer, mas, se o fizesse, me desmancharia em choro. Nisso, o álcool agiu mais uma vez. O equilíbrio débil se fez presente, então acabei por levar nossos corpos pro lado e caímos no chão, entre o sofá e a mesinha.
— VITÓRIA DO CÉU! — gritei por cima dela, num assombro ao perceber que a mesma bateu o ombro na quina da mesa. A palhaça riu.
— Deixe disso, mulher. Foi só uma batidinha, só. Tô tão doida que nem senti. Qualquer coisa eu tenho uma médica de plantão aqui.
— Ah, sim, uma médica beúda. Bastante útil mesmo — ri acompanhada enquanto me aninhava nela — Do chão num passa.
— Será mermo? Já pensou se o andar despenca?
— Pois se eu cair de novo, puxo tu junto até o inferno.
— Armaria, Naclara.
Me apertei mais em seu corpo, seus braços me envolviam do mesmo jeito. Aspirei profundamente aquele pescoço, impregnando cada molécula possível em mim, feito uma tatuagem química. Em pensamento, lancei uma súplica: "fica, me queira e queira ficar". Depositei-lhe um beijo naquela curva sinuosa. Ela fez mesmo no topo de minha cabeça. Em seguida, os dedos longos e leves passaram a percorrer meus fios, num pentear carinhoso de um cafuné. Assim dormimos, numa redoma de afeto etílico.
No dia seguinte, acordamos tão em cima da hora pra ir ao aeroporto que não houve nem uma palavra trocada quanto ao ocorrido, só um vai pra lá e um vem pra cá da gente se arrumando e pegando as coisas. Aquilo, de certa forma, me deixava desconfortável, mas não tomei iniciativa alguma. Vitória continuava a me tratar do jeito normal e seu humor era da mesma peculiaridade de sempre. Como podia? A minha cabeça tinha o peso de 80 elefantes, certamente eu iria apagada no avião.
Tudo pronto, lanche feito, zarpamos em direção ao aeroporto.
A despedida foi cruel, com lágrimas de ambas as partes. Pela última vez, ela beijou o topo de minha cabeça, naquele gesto de proteção, e eu a abracei, novamente lhe roubando o cheiro característico e o guardando num frasco de minha memória.
— Voa, voa, brabuleta — ela cantarolou no meu ouvido.
— Besta — ri, dando-lhe um leve tapa no ombro — Amo tu.
— Amo tu um tantão.
Mais um abraço apertado e segui rumo ao embarque.
Enquanto as pessoas lentamente se acomodavam em seus lugares, me ajeitei pra dar aquele cochilo, mas antes de botar o celular no modo avião, uma notificação surgiu. E meu coração saltou.
Vitória Falcão - 6:39 AM
ninha, lembra que eu tinha prometido pra tu sobre te gravar uma música? então, eu gravei aqui. queria te fazer uma surpresa, te entregar algo feito por mim mesma num momento como esse pra fazer tu se sentir especial. porque tu é especial pra mim. nós somos apaixonadas por música, você disse que gosta da minha voz, então por que não lhe mandar um vídeo cantando? escolhi essa música só pra você. é do caê, porque tu sempre canta ''o leãozinho'' pra mim; caetano é teu nome também, um nome de peso aliás; você é ana clara, clarinha, clara, então clarice; você é morena, como as manhãs; você é um pedaço de gente, ou melhor, de luz. e tímida (só pra quem não te conhece, né?). tu, às vezes, chega a ser tão fechadinha que me assusta, mas eu te admiro demais mesmo assim. eu amo o seu mistério, por mais que eu me pegue me perguntando se te fiz algo ou o que se passa aí dentro. tu faz parte da minha praia, ninha: quando tu se mostra, sempre me oferece uma pérola linda, seja ela uma conversa, uma composição sua ou um sorriso. eu vou sempre estar aqui pra você, minha cumbuquinha. te amo. ♥♥♥♥E um vídeo em anexo.
Abri e era Vitória cantando a cappella Clarice, de Caetano Veloso.
...Que mistério tem Clarice?
que mistério tem Clarice
pra guardar-se assim tão firme
no coração?
Clarice era morena
como as manhãs são morenas
era pequena no jeito
de não ser quase ninguém...No melhor cover que poderia haver, o sorriso sem deixar de marcar presença conduzia a canção conhecida a emanar num quarto inundado de sol recém-acordado. Inúmeros pensamentos me rondavam, grande parte tomada por perguntas: por que justamente essa música? O que será que Vitória esperava de mim ao ver isso? Ela esperava algo? Nosso passatempo preferido era levantar interpretações de músicas e "Clarice" se configurava como uma fonte muito abundante, até pra devaneios que eu não sabia se deveria alimentar.
O poema cantado me atingia profundamente, não só porque era dedicado a mim e feito por alguém singular, mas também por suas nuances tão bem atreladas. Caetano e Capinan contrastavam na letra o recato um tanto litúrgico da moça morena em questão, ao redor do qual orbitavam desejos, inclusive de figuras eminentes da sociedade. Provavelmente, por conta dos elementos citados, o pano de fundo era uma cidade pequena. Tanta inocência e mistério emaranhados tornavam Clarice uma figura quase lendária, marcante à sua maneira, o suficiente pra se sobressair na memória de seu amado e este repassar sua história ou estória em cantiga.
E havia a despedida triunfal. Pra mim, era o ápice.
Tem que um dia
Amanhecia e Clarice
Assistiu minha partida
Chorando, pediu lembranças
E vendo o barco se afastar de Amaralina
Desesperadamente linda, soluçando e lentamente
E lentamente despiu o corpo moreno
E entre todos os presentes
Até que seu amor sumisse
Permaneceu no adeus chorando e nua
Para que a tivesse toda
Todo o tempo que existisseTudo parecia se relacionar a nós ou estaria eu confabulando demais com meus botões? Se eu era fechada, Vitória era muito verborrágica em compensação. Cada qual à sua maneira, não sabíamos ser diretas no falar.
Que mistério tinha Vitória?
Sem dúvida era o melhor presente que eu poderia receber de alguém na vida todinha. Creio que seria um tanto repetitivo mencionar meu sorriso de orelha a orelha durante a viagem. Melhor que qualquer nuvem cibernética, eu guardaria aquele vídeo no acervo do coração.
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N/A: Pessoas, o que falar? Tô tão feliz com o feedback de vocês! É sério, se tivesse um único ser lendo isso aqui, eu já estaria satisfeita. Não imaginava esse tanto de visualizações, pra mim já tá bem além do esperado. Mil perdões por esses hiatos ridículos entre os capítulos, tive problemas inesperados (pessoais e de saúde - não tenho isso desde final do ano passado, daí esses tempos padeci feio mesmo). Planejei uma fic curta, de 6 capítulos, mas as inconveniências da vida me fizeram alongar os intervalos entre eles. Bem, isso é mais que uma fic pra mim, é um relato pessoal diluído em estória, então espero que levem em consideração. No mais, estou fazendo de tudo pra finalizá-la o quanto antes e pretendo escrever uma nota final com maiores esclarecimentos. Um grande beijo em vocês!

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Origami
FanficA vida é um papel que vai sendo moldado pelas mãos do destino conforme nossas decisões e encontros. Somos a forma de nossas várias histórias, feito um origami. Observações: - Fic do duo Anavitória - Narrada pela Ana - A estória é uma mistura entre o...