O barco

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Depois de dois anos inteiros, eu poderia dizer que estava um pouco mais leve em relação à Vitória.

Como todo início, foi difícil, foi muito difícil. O resto daquele ano inteirinho passei chorando aqui e ali me lembrando dela, de nossos momentos. Pior ainda quando sonhava. Nos primeiros meses, então, eu chorava todo santo dia, ou melhor, todo maldito dia — a relatividade de Einstein era incapaz de explicar com precisão a morosidade do tempo quando eu atentava para o fato de que nunca mais nos falaríamos. Era difícil seguir em frente sabendo que nada estava certo, nem errado*.

Mas the show must go on. As loucuras da universidade, as novas pessoas que entraram na minha vida foram pouco a pouco sedimentando minha monomania, até que ela se transformasse de ferida inflamada e exposta à casca. Ela estava ali, como que para marcar sua presença em mim, porém não doía aquela dor lancinante de outrora.

Certo dia, eu estava em um cinema com uns amigos assistindo a um filme. Soltei uma gargalhada plena durante um ato, acompanhada pelos mesmos que estavam nas poltronas vizinhas. O sorriso de salmão me veio à mente em um lampejo enquanto meus músculos faciais continuavam contraídos. Curvei mais ainda meus lábios ao perceber que não era dependente daquela risada rouca ao meu lado para mostrar meus dentes por aí.

Voltei a ouvir canções de amor sem maiores preocupações ou associações, as de bad por vezes cutucavam o cascão por cima. Quem nunca chorou ouvindo Damien Rice, não é mesmo? Só que até eu enchia o saco em alguns instantes de todo esse drama. Corria os polegares pelo Spotify e botava um funk ou um sertanejo universitário animado, que me fizesse balançar o corpo afim de espantar todos esses demônios.

Aquelas músicas sobre pegar geral eu cantava de cor, com convicção, mas isso não representava minha realidade. Desde que Vitória entrou na minha vida, eu não ficava com mais ninguém. Bárbara me puxava a orelha, jogava piadinhas sobre me ''guardar'' pruma pessoa que nunca me quis. Mas eu simplesmente não conseguia sentir atração por mais ninguém. Toda essa obrigação de jogar para debaixo do tapete os sentimentos, usar pessoas de escudo com o único intuito de esquecer outra me causavam uma irritação incrível. Se viesse alguém interessante, viria de qualquer modo, não iria dispender energia atrás disso. Passei no cartório pra registrar ''apatia'' como meu terceiro sobrenome.

Até que um belo dia, bêbada de tanto misturar tudo, troquei uns beijos com uma desconhecida aleatória numa balada. Não peguei seu número ou algo do tipo, não sabia seu nome, nem queria. Além disso, eu continuava igualmente tímida, o álcool era só um escapismo banal. Meus amigos comemoravam como se fosse gol nos minutos finais de uma copa do mundo, especialmente Babi: "Porra, bicho, até que enfim! Finalmente meteram uma outra língua nessa tua boca cheia de teias''. De certa forma, eu também estava feliz por superar um pequeno degrau de cada vez. Nada como um dia após o outro.

Não contava que também conheceria um rapaz da alma bonita.

Com alma de poeta, Lucas Veiga foi um dos melhores presentes que a vida me deu de surpresa durante esses tempos obscuros. Nunca poderia imaginar que uma conversa de pub em Minas entre amigos em comum resultaria em uma amizade tão sincera e forte com um moço malabarista de palavras. Nossa conexão foi imediata, Lucas também havia passado recentemente por um momento amoroso complicado e a empatia mútua nos rendeu várias catarses em dose dupla, especialmente com músicas e poesias. Sua escrita me fascinava e ele dizia o mesmo quanto a minha voz e as minhas composições.

Foi aí que ele me presenteou com um poema.

Quando eu te deixar
Vou levar papel em branco
Espalhar por cada canto um barco de papel...

Minhas bochechas queimavam enquanto olhava para meus parentes e amigos no quintal de casa ao apresentar em voz e violão meu atestado de coração partido neste Natal.

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