Origami

O pássaro

Seria o amor pura invenção burguesa, mera construção social? Como estudante de medicina, sei que não. Pode haver uma influência social sim, mas não se resume só a isso. Somos animais bio-psico-sociais, temos três fatores que permeiam todas as nossas ações, nosso ser, e é o que nos faz tão complexamente belos. Estudar a parte ''bio'' é o que me mantém em Araguari.

Oxicitocina, vasopressina.

A razão me diz que tudo isso não passa duma bomba hormonal arquitetada por Vitória na minha cabeça, hormônios e neurotransmissores são os responsáveis por aqueles estados mentais alterados que enfrentamos nessas situações. Nada menos que uma demência temporal: aquela motivação por querer sempre fazer algo a mais pra pessoa, o apego, a conexão, o serzinho que se torna único num mundo superpopulado.

Princesa, surpresa
Você me arrasou
Serpente, nem sente
Que me envenenou
Senhora, e agora?
Me diga aonde vou
Senhora. Serpente. Princesa.

Rio baixinho com a ironia do modo aleatório do Spotify enquanto limpo meu quarto na república. ''Princesa'', o jeito como ela me chamava, em uma música que fala sobre amor não correspondido... Ai, ai, a vida.

Não ouço Caetano desde que deixei de falar com Vitória, ou seja, desde as férias do semestre passado. Novamente não tive o que responder, sua pergunta ficou suspensa no ar. O que eu falaria? Deveria falar algo? Não valeria a pena, eu sabia que poderia enveredar por um caminho de brigas. De que elas adiantariam se, no final, tudo se resumiu a uma guerra de batalhas perdidas? Aliás, nem batalha houve, graças à minha timidez. Ela também não veio atrás, então deveria estar muito bem, obrigada, com o tal moço da alma bonita. Nem conhecia o cara, nem queria, mas sentia uma puta raiva — a qual, às vezes, se estendia a ela por também não vir atrás de mim pra tentar me entender. Não a excluí, mas passei a deixar de segui-la em todas minhas redes sociais e apaguei todos os nossos arquivos trocados. Vê-la só pioraria tudo porque qualquer vislumbre seu no feed fazia repercussão imediata no meio do meu peito.

Mas quando o nome, o rosto ou as palavras de Vitória me vinham à mente, 99% do tempo tudo se resumia a uma dor imensa, uma dor em forma de facas que desciam à força pela garganta com uma água salgada percorrendo meu rosto. Uma sensação aguda e cega, sem paliativos.

Eu preferia ter um braço ou uma perna quebrada a sentir tudo isso, afinal, as estruturas cerebrais envolvidas nas dores físicas são as mesmas para as dores emocionais e sociais. Não à toa nossa linguagem, em diversas sociedades, associam palavras ligadas a danos físicos aos emocionais nessas circunstâncias, então digo: meu coração estava partido, eu estava completamente machucada. Eu preferia quebrar qualquer parte do corpo a isso, pelo menos seria evidente pros outros, mais compreensível e, de alguma forma, algo externalizado. Quando se trata do universo dentro de nós, tudo é tão complicado e em grande parte desconhecido tanto quanto o meio em que nossa grande bola azul gravita.

But lately I see her ribbons and her bows
Have fallen from her curls
She takes just like a woman, yes, she does
She makes love just like a woman, yes, she does
And she aches just like a woman
But she breaks just like a little girl

Felizmente as duas meninas que moram comigo não estavam aqui porque esse shuffle tá de sacanagem, puta merda.

A voz esgarçada de Dylan invadia o banheiro enquanto eu tomava banho. Enquanto a água lavava minha pele, olhei pra baixo, pro meu corpo nu. Quantas e quantas vezes não desejei que Vitória o tivesse? Quantas vezes não questionei se ela gostaria de vê-lo assim, se ele era suficiente? Quantas vezes não me toquei imaginando sua mão ali? O cheiro dela sempre me vinha à mente, tudo era muito nítido. Eu adorava as multifaces do amor: carinhoso, safado, zeloso, engraçado mas agora, dolorido.