Libertação

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Interessante como as coisas acontecem. Não existem coincidências, existe apenas a atuação de uma força maior. Alguns chamam de destino, eu prefiro chamar de plano divino criado para a nossa existência. Mas até esse plano carece de alteração. Há o livre arbítrio e podemos realizar as escolhas que nos convenhamos. Afinal de contas, quais seriam as chances de você estar ali e ser um médium capaz de me ver? Naquele instante, apenas pensava no dia que deixei meu corpo material: Quando desencarnei, era pra ser um dia normal como qualquer outro. Por mais incrível que possa ser, não me lembro de nada deste dia, muito menos de como eu morri. Talvez fora uma espécie de trauma, já que eu estava na flor de minha idade, vivendo os momentos mais felizes da minha vida e com uma expectativa de vida de até oitenta anos de vida mais ou menos, pelo que me explicaram depois lá em cima.

Lembro-me apenas de acordar num lugar fétido, escuro e úmido. Chorava como uma criança por dias, semanas, meses... Perdi a noção de tempo e espaço ali. Sentia-me como uma criança que acabara de ter um presente tomado de suas mãos forçosamente. E não deixava de ser verdade, pois quando encarnado eu era um verdadeiro "amante da vida". Adorava tudo e aproveitava o máximo que podia. Dava risada das dificuldades e apesar de não ter as coisas de maneira tão fácil assim eu sempre dava um "jeitinho". Eu era um especialista em viver com felicidade e estilo.

Pensava constantemente nos erros cometidos em vida. As vozes da minha consciência diziam o que eu deveria fazer e como me portar em determinadas situações, porém eu me negava. Quando eu negava demasiadamente, o recado era dado de outra forma. Ou através de uma doença, ou um amigo que dizia algo do tipo: - Pare de dar desculpas e vá fazer!!! Cargas adquiridas pelo corpo e transferidas ao espírito. Tudo fazia sentido ali, depois de um certo tempo filosofando comigo mesmo.

Depois de muito chorar, lembrei-me de como eu fazia em vida. Vivia levando tombos das minhas "burradas" mas sempre erguia com louvor. Fiz o mesmo, levantei-me, enxuguei as lágrimas e caminhei, mesmo sentindo dores por todo o corpo. Andei por dias e encontrei criaturas estranhas e horrendas ali onde eu estava. Graças à minha doutrina espírita em vida tive noção que ali eu me encontrava no umbral! Também chamado de purgatório por algumas outras religiões. Percebi que eu estava ali por um motivo e clamei aos céus por auxílio. Deixei meu orgulho de lado e resolvi pedir por ajuda. E não é que a ajuda veio mesmo! Não foi bem do jeito que o pessoal diz em romances e tudo mais. Nenhum grupo de homens vestidos de branco surgiu com olhares de bons samaritanos, estendendo suas mãos oferecendo-me para ir para "um lugar melhor". O que aconteceu foi que avistei uma grande fortaleza, como os palácios magníficos que permeavam meus sonhos lúcidos em vida, num lugar que não condizia com a paisagem, uma verdadeira flor no deserto.

Um amontoado de seres estranhos, uns rastejando e outros, como eu, que conseguiam se locomover normalmente, entretanto com certa dificuldade, tentavam alcançar os portões daquela fortaleza. Aqueles que conseguiam confrontá-la arranhavam os portões e blasfemavam de diversas formas diferentes. Estranhei aquela cena que parecia mais um daqueles filmes de zumbis pós-apocalípticos, porém me aproximei. Alguns daqueles seres tentaram me agredir no caminho, mas minha persistência e vontade era maior naquele instante e mesmo sentindo pena daqueles seres, repeli os atacantes com socos e pontapés, pois apenas desta maneira consegui abrir passagem até o portão.

"Na porrada mesmo", ganhei acesso ao grande portão branco daquela cidadela dourada. Afastei aqueles seres que arranhavam os portões e quando estava defronte com aquela maravilha, trombetas tocaram e o portal principal foi-se abrindo vagarosamente. As criaturas que eu havia afastado um pouco dali tentaram aproximar-se novamente, mas uma imensa luz branca fez com que eles quisessem ficar o mais longe o possível dos portões. Cobri meus olhos e ouvi uma voz:

- Seja bem vindo ao Portal da Consciência. Fortaleza e posto de socorro do UMBRAL, mais precisamente no vale dos suicidas. Pois até aqui, e principalmente aqui, estão aqueles que precisam mais de nós.

Senti da mesma maneira quando se acorda e esfrega os olhos com pálpebras dilatadas, diante de uma imensa luz instantânea que seja direcionada para ti. Aos poucos meus olhos foram se acostumando, meu coração se encheu de esperanças. Fui levado para um grande salão, que lembrava a sala de impérios antigos que permeavam meus melhores sonhos.

- Aliás, já sonhei com isto antes! Este salão gigantesco dourado não me é estranho. Vi ele nos meus sonhos quando encarnado! As grandes pilastras brancas que contrastam com o dourado do local e que vão até o teto arredondado. As cadeiras nas laterais e no fundo, bem ao centro. Tudo conforme me lembro! - indaguei entusiasmado.

- É claro. Você já esteve aqui! Por isto se lembra. Durante o sono sabes muito bem que sua alma abandona o corpo e vem nos visitar. Você finalmente chegou em casa. Venha, descanse, amanhã terás um longo dia pela frente...

*

- Bem. À partir daí muita coisa aconteceu para eu me tornar o que sou hoje: o caçador de demônios. Mas vamos devagar! "Tô" ligado que todos adoram um "flashback". Então vamos voltar ao tempo atual pois estamos quase chegando onde precisamos. Por favor, Eduardo, peça para Nakata estacionar ali. - o espírito apontou para uma vaga bem perto do centro espírita: Caminhos de Chico Xavier, onde Eddie aprendeu como controlar suas habilidades. Durante todo o tempo desde o acontecido na prefeitura até aquele presente momento, o ser místico acompanhou Eduardo e Nakata contando sua história, como se fosse um mero passageiro comum dentro do carro. A única peculiaridade era que apenas Eduardo podia ver e ouvir o companheiro. Os dois jovens ficaram quietos durante todo o caminho, sendo que Eddie tentava brigar com os calafrios em seu estômago, enquanto o seu amigo japonês não sabia se achava que aquilo tudo não passava de uma mera loucura ou se eles estavam vivendo numa espécie de história em quadrinhos. Nakata não entendia muito bem porque estava ajudando o colega. Talvez sua curiosidade estivesse sobressaindo o bom senso.


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