Capítulo 1- Estudos

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Várias horas letárgicas mais tarde, o avião finalmenteaterrissou no aeroporto de Portland, no Oregon. Quando meus péstocaram o asfalto da pista, corri o olhar pelo terminal e pelo céucinzento e nublado. Fechei os olhos e deixei a brisa fria soprar minhapele. Ela trazia o cheiro da mata. Um chuvisco suave molhou meusbraços nus. Era bom estar em casa.Respirando fundo, senti o Oregon me trazer de volta àrealidade. Eu fazia parte daquela terra e ela fazia parte de mim. Meulugar era ali - onde eu crescera e passara toda a minha vida. Minhasraízes estavam ali. Meus pais e minha avó estavam enterrados ali. OOregon me recebeu como a uma filha amada, acolheu-me em seusbraços frios, acalmou minha mente e, por meio de seus pinheirossussurrantes, me prometeu paz.Nilima desceu os degraus logo depois de mim e esperou emsilêncio enquanto eu absorvia o ambiente familiar. Ouvi o zumbidode um motor veloz e um conversível azul-cobalto surgiu na esquina.O elegante carro esportivo era da mesma cor dos olhos dele. O Sr. Kadam deve ter providenciado o carro. Revirei os olhoslembrando seu gosto por coisas caras. Ele planejava cada mínimodetalhe - e sempre com estilo. Pelo menos o carro é alugado, pensei.Guardei minha bagagem no porta-malas e li na traseira:Porsche Boxster RS 60 Spyder. Balancei a cabeça e murmurei:- Meu Deus, Sr. Kadam, eu me contentaria em pegar o ônibuspara Salem.- O quê? - perguntou Nilima, educadamente.- Nada. Só estou feliz por chegar em casa.Fechei o porta-malas e afundei no assento de couro em doistons de azul e um de cinza. Partimos em silêncio. Nilima sabiaexatamente aonde estava indo, portanto não me dei ao trabalho delhe ensinar o caminho. Apenas recostei a cabeça e fiquei observando océu e a paisagem verde pela janela.Adolescentes passavam por nós, assoviando de seus carros,admirando a beleza exótica de Nilima, com seus longos cabelosescuros voando ao vento, ou o belo automóvel em que estávamos.Não sabia bem qual dos dois inspirava os assovios, só imaginava quenão eram para mim. Eu usava minhas roupas de sempre: camiseta,calça jeans e tênis. Fios de cabelo castanho-dourado se emaranhavamem minha trança e açoitavam meus olhos castanho-avermelhados emeu rosto riscado pelas lágrimas. Homens mais velhos tambémpassavam por nós devagar. Eles não assoviavam, mas certamenteadmiravam a visão. Nilima os ignorava e eu pensava: Devo estar tãohorrível por fora quanto me sinto por dentro.Quando chegamos ao centro de Salem, passamos direto pelaponte Marion Street, que teria nos levado ao outro lado do rioWillamette e à rodovia 22, na direção das fazendas de Monmouth eDallas. Avisei a Nilima que ela havia perdido a saída, mas ela selimitou a dar de ombros e dizer que estávamos tomando um atalho. - Tudo bem - retruquei com sarcasmo. - O que são maisalguns minutos numa viagem de dias?Nilima jogou seu lindo cabelo para trás, sorriu para mim econtinuou dirigindo, movendo-se em meio ao tráfego que seguia paraSouth Salem. Eu nunca tinha ido para aqueles lados. Eradefinitivamente o caminho mais longo para Dallas.Nilima seguiu em direção a um grande morro coberto pelamata. Lentamente, subimos vários quilômetros pela linda estradasinuosa e margeada por árvores. Por entre elas, vi ruas de terra e casasque pontilhavam a floresta aqui e ali, mas a área era em grande parteintocada. Fiquei surpresa pelo fato de a cidade ainda não a teranexado e começado a construir ali. Era um lugar encantador.Reduzindo a velocidade, Nilima tomou uma estrada particular,subindo ainda mais a colina. Embora passássemos por caminhossecundários, eu não via construções. No fim da estrada paramosdiante de uma casa geminada aninhada no meio da floresta depinheiros.Cada lado do prédio era a imagem espelhada do outro, comdois andares, garagem e um pequeno pátio compartilhado. Ambostinham uma ampla janela na sacada que dava para as árvores, Orevestimento de madeira era pintado de castanho e um tom escuro deverde, e o telhado era coberto com telhas verde-acinzentadas.Lembrava, de certa forma, um chalé de esqui.Nilima entrou suavemente na garagem e desligou o carro.- Chegamos em casa - anunciou.- Em casa? Como assim? Não vamos para a casa dos meuspais adotivos? - perguntei, ainda mais confusa do que já estava.Nilima sorriu, compreensiva.- Não. Esta é a sua casa - disse ela delicadamente. - Minha casa? Do que, você está falando? Eu moro em Dallas.Quem mora aqui?- Você. Venha, vamos entrar que eu explico.Passamos por uma área de serviço e entramos na cozinha, queera pequena, com cortinas amarelas, eletrodomésticos de açoinoxidável novinhos em folha e paredes decoradas com motivosamarelo-limão. Nilima pegou duas garrafas de refrigerante diet nageladeira.Larguei minha mochila no chão e falei:- 0k, Nilima, agora me diga o que está acontecendo.Ela ignorou meu pedido. Em vez disso, me ofereceu orefrigerante, que recusei, e então sugeriu que eu a seguisse.Suspirando, tirei os tênis para não sujar o carpete felpudo dacasa e a acompanhei até a pequena porém charmosa sala de estar. Alinos sentamos num belo sofá de couro marrom. Uma estante alta,cheia de clássicos encadernados com capa dura que provavelmentecustavam uma fortuna, me acenava convidativa do canto, enquantouma janela ensolarada e uma grande televisão de tela plana sobre umrack de madeira polida também disputavam minha atenção.Nilima começou a folhear os papéis deixados sobre a mesa decentro.- Kelsey - começou ela -, esta casa é sua. É parte dopagamento pelo seu trabalho neste verão na Índia.- Eu não estava trabalhando, Nilima.- O que você fez foi o trabalho mais vital de todos. Vocêrealizou muito mais do que qualquer um de nós sequer tinhaesperança de conseguir. Temos uma grande dívida para com você eessa é uma pequena forma de recompensar seus esforços. Você superou obstáculos terríveis e quase perdeu a vida. Somos todosmuito gratos.Constrangida, brinquei:- Bem, agora que você colocou a coisa dessa maneira... Ei,espere! Você disse que esta casa é parte do meu pagamento? Entãotem mais?Com um gesto afirmativo da cabeça, Nilima respondeu:- Tem.- Não. Eu não posso aceitar este presente. Uma casa já é umexagero... E ainda tem outras coisas? É bem mais do que combinamos.Eu só queria algum dinheiro para pagar os livros da faculdade. Ele nãodevia fazer isso.- Kelsey, ele insistiu.- Bem, então vai ter que desinsistir. Isso é um exagero,Nilima. É sério.Ela suspirou ao olhar para o meu rosto, que exibia umadeterminação férrea.- Ele quer que você fique com a casa, Kelsey. Isso vai deixá-lofeliz.- Mas não é nada prático! Estou no meio do nada. Agora quevoltei para casa, pretendo me matricular na faculdade e não há linhasde ônibus que passem por aqui.Nilima me dirigiu um olhar perplexo.- Linhas de ônibus?! Se quiser mesmo ir de ônibus, poderádirigir até o terminal.- Dirigir até o terminal? Isso não faz o menor sentido. - Bem, o que você está falando é que não faz o menorsentido. Por que você não quer ir de carro para a faculdade?- De carro? Que carro?- O que está na garagem, é claro.- O que está na... Ah, não. Você só pode estar brincando!- Não. Não estou brincando. O Porsche é seu.- Ah, não. Não é, não! Você sabe quanto custa aquele carro?De jeito nenhum!Peguei meu celular e procurei o número do Sr. Kadam. Noinstante em que ia pressionar o botão de chamada, ocorreu-me umpensamento que me deteve imediatamente.- Tem mais alguma coisa que eu deva saber?- Bom... - disse Nilima, hesitante. - Ele também tomou aliberdade de matricular você na Western Oregon University. O cursoe o material didático já foram pagos. Seus livros estão na bancada, aolado de sua lista de disciplinas, um moletom da Western Oregon eum mapa do campus.- Ele me matriculou na Western Oregon? - perguntei,incrédula. - Eu estava planejando ir para a faculdade comunitárialocal e trabalhar... não entrar para a Western Oregon.- Ele deve ter achado que você iria preferir uma universidademaior. Suas aulas começam na próxima semana. Quanto a trabalhar,você pode, se quiser, mas não será necessário. Ele também abriu umaconta bancária para você, O cartão está na bancada. Não se esqueçade assiná-lo no verso.Engoli em seco.- E... hã... exatamente quanto dinheiro tem nessa conta?Nilima deu de ombros. - Não faço a menor ideia, mas tenho certeza de que é osuficiente para seus gastos pessoais. Naturalmente, nenhuma das suascontas de consumo será enviada para cá. Tudo irá direto para umcontador. A casa e o carro já estão quitados, assim como todas as suasdespesas na universidade.Ela deslizou um maço de papéis em minha direção e então serecostou e bebericou seu refrigerante.Por um minuto fiquei sentada ali, imóvel, e então me lembreide minha decisão de ligar para o Sr. Kadam. Peguei o telefone eprocurei o número.Nilima me interrompeu.- Tem certeza de que quer devolver tudo, Kelsey? Estou certade que ele faz questão de que você fique com essas coisas.- O Sr. Kadam deveria saber que não preciso de sua caridade.Vou explicar que a faculdade comunitária é mais do que adequada eque realmente não me importo de morar no dormitório e andar deônibus.Nilima se inclinou para a frente.- Mas, Kelsey, não foi o Sr. Kadam quem providenciou tudoisso.- O quê? Se não foi o Sr. Kadam, então quem... Ah! -Desliguei o celular mediatamente. Não havia a menor chance de euligar para ele, qualquer que fosse o motivo. - Então ele faz questãodisso, não é?As sobrancelhas arqueadas de Nilima se juntaram,expressando sua confusão.- É, eu diria que sim. Deixá-lo havia quase dilacerado meu coração. Ele estava a maisde 11 mil quilômetros de distância, na Índia, e ainda assim arranjava umjeito de ter algum poder sobre mim.- Muito bem - resmunguei. - Ele sempre consegue o quequer mesmo. Não em sentido eu tentar devolver. Ele vai pensar emalgum outro presente exorbitante, que só vai servir para complicarainda mais nosso relacionamento.Um carro buzinou lá fora, na entrada.- Minha carona de volta ao aeroporto chegou - disse Nilima,levantando-se. - Ah! Eu quase esqueci. Isto aqui também é paravocê. - Ela pôs um celular novo na minha mão, ao mesmo tempo emque pegava o aparelho velho, e me abraçou rapidamente antes de sedirigir à porta da frente.- Mas... espere! Nilima!- Não se preocupe, Kelsey. Vai dar tudo certo. Osdocumentos de que presa para a universidade estão na bancada dacozinha. Tem comida na geladeira e todos os seus pertences estão nosegundo andar. Pode pegar o carro e visitar sua família adotiva aindahoje, se quiser. Eles estão esperando seu telefonema.Ela se virou, caminhou graciosamente para a porta e entrou nocarro que a aguardava. Do banco do carona, acenou. Acenei de volta,tristonha, e fiquei olhando até o elegante sedã preto desaparecer devista. De repente, eu estava só numa casa estranha, cercada pela matasilenciosa.Após a partida de Nilima, resolvi explorar o lugar que eu agorachamaria de lar. Ao abrir a geladeira, vi que as prateleiras estavambem abastecidas. Peguei um refrigerante e fui espiar o interior dosarmários. Encontrei copos e pratos, assim como talheres, utensílios decozinha e panelas. Voltei para conferir a gaveta de baixo da geladeira,seguindo um palpite, e lá estavam eles - vários limões. Evidentemente, isso tinha sido coisa do Sr. Kadam. Atencioso, elesabia que beber água com limão me confortaria.O toque do Sr. Kadam não terminava na cozinha. O lavabo noprimeiro andar era decorado em tons de verde-acinzentado eamarelo-limão. Até o sabonete líquido tinha aroma de limão.Coloquei meus tênis numa cesta de vime sobre o piso decerâmica da área de serviço, ao lado de um conjunto novo demáquina de lavar e secadora, e segui para o pequeno escritório.Meu velho computador encontrava-se no meio da mesa, masao seu lado havia um notebook novinho em folha. Uma cadeira decouro, um arquivo e uma prateleira com papel e outros suprimentoscompletavam o escritório.Peguei a mochila e subi a escada para ver meu novo quarto.Uma linda cama queen size com um grosso edredom cor de marfim ealmofadas com estampa de pêssegos ficava junto à parede, tendo aospés um antigo baú de madeira. Poltronas aconchegantes cor depêssego estavam arrumadas no canto, de frente para uma janela quedava para a floresta.Sobre a cama, havia um bilhete que me deixou mais animada:Oi, Kelsey!Seja bem-vinda! Ligue para nós assim que possível - queremossaber tudo da viagem.Todas as suas coisas estão guardadas nos devidos lugares.Adoramos sua casa nova!Com amor,Mike e Sarah Ler o bilhete de Mike e Sarah - além do fato de estar noOregon - me reequilibrou. A vida deles era normal. Minha vida comeles era normal e seria bom estar com uma família normal e agircomo um ser humano normal, para variar. Dormir no chão da selva,falar com deusas indianas, me apaixonar por um... tigre - nada dissoera normal. Nem de longe.Abri o closet e vi que de fato minhas roupas e a coleção de fitasde cabelo tinham sido trazidas da casa de Mike e Sarah. Corri osdedos por alguns daqueles itens que eu não via fazia meses. Quandoabri o outro lado do closet encontrei todas as roupas que haviam sidocompradas para mim na Índia, assim como várias peças novas aindaem suas capas de proteção.Como o Sr. Kadam conseguiu fazer essas coisas chegarem aquiantes de mim? Eu deixei tudo isso na Índia!Fechei a porta, encerrando as roupas e as lembranças,determinada a não ro abri-la outra vez.Seguindo para a cômoda, puxei a gaveta do alto. Sarah haviaarrumado minhas meias do jeito que eu gostava. Os pares de meiaspretas, brancas e de cores variadas estavam enrolados em bolasperfeitas, organizadas em fileiras. Ao abrir a gaveta seguinte, osorriso desapareceu do meu rosto. Ali estava o pijama de seda que eu,de propósito, deixara na Índia.Meu peito ardeu quando passei a mão pelo tecido macio.Então, resoluta, e fechei a gaveta. Virando-me para deixar o quartoclaro e arejado, me toquei de uma coisa e na mesma hora o sangueafluiu rapidamente para o meu ia rosto. As cores do quarto erampêssego e creme.Deve ter sido escolha dele, deduzi. Uma vez ele disse que eucheirava a pêssego com creme. Era de se imaginar que acharia uma forma de me fazer lembrar dele, mesmo a um oceano de distância.Como se eu pudesse esquecer...Joguei a mochila na cama e imediatamente me arrependi,lembrando que Fanindra ainda estava dentro dela. Depois de tirá-lacom cuidado e me desculpar, acariciei-lhe a cabeça dourada e acoloquei sobre uma almofada. peguei o celular novo no bolso dacalça. Como tudo mais, o aparelho era caro e totalmentedesnecessário, com design da grife Prada. Liguei o telefone e espereique o número dele aparecesse primeiro, mas isso não aconteceu.Tampouco havia mensagens. Na verdade, os únicos números namemória eram o do Sr. Kadam e o dos meus pais adotivos.Vários sentimentos tomaram conta de mim. A princípio fiqueialiviada. Depois, confusa. E em seguida, desapontada. Uma parte demim ponderou: Um telefonema teria sido gentil. Só para ver secheguei bem.Irritada comigo mesma, liguei para meus pais adotivos. Disse aeles que estava em casa, cansada da viagem, e que iria jantar com elesna noite seguinte. Ao desligar, fiz uma careta, me perguntando quetipo de surpresa à base de tofu estaria à minha espera. Mas qualquerque fosse o cardápio natural e saudável, valeria a pena suportá-lo pelaoportunidade de revê-los.Então desci a escada, liguei o som, preparei um lanche comfatias de maçã e manteiga de amendoim, e comecei a folhear ospapéis da universidade que estavam na bancada. O Sr. Kadamescolhera estudos internacionais como minha principal área deinteresse, incluindo também história da arte.Examinei o quadro de horários. Eu não sabia como, mas o Sr.Kadam conseguira colocar a mim, uma caloura, em turmas de nívelmais avançado. Não só isso, como também já me inscrevera tanto noprimeiro quanto no segundo trimestre, embora a matrícula dosegundo ainda não estivesse aberta. A Western Oregon provavelmente recebeu uma polpuda doaçãovinda da Índia, pensei, com um sorriso irônico. Não me surpreenderiase visse um novo prédio ser erguido no campus este ano.KELSEY HAYES, MATRÍCULA: 69428LTWESTERN OREGON UNIVERSITYPRIMEIRO TRIMESTRERedação acadêmica 115 (4 créditos). Introdução à redaçãode trabalhos acadêmicos.Latim 101 (4 créditos). Introdução ao latim.Antropologia 476 D - Religião e ritual (4 creditos). Umestudo das praticas religiosas no mundo. Apoia-se na antropologiapara analisar a religiosidade enquanto enfoca tópicos particulares,entre os quais: possessão espiritual, misticismo, bruxaria, animismo,feitiçaria, veneração ancestral e magia. Examina a mistura dasprincipais religiões do mundo com crenças e tradições locais.Geografia 315 - O subcontinente indiano (4 créditos).Uma análise do Sudeste Asiático e sua geografia, com ênfase na Índia.Avalia a relação econômica entre a Índia e outras nações; examinapadrões, problemas e desafios especificamente relacionados àgeografia; e explora, do ponto de vista histórico e moderno, adiversidade étnica, religiosa e linguística de seu povo.SEGUNDO TRIMESTRE História da arte 204- Da Pré-história ao períodoromânico (4 créditos). Um estudo de todas as formas de arte desseperíodo com ênfase específica na relevância histórica e cultural.História 470- A mulher na sociedade indiana (4créditos). Uma análise da mulher na Índia, seus sistemas de crenças,seu papel cultural na sociedade e a mitologia - passada e presente -associada.Redação acadêmica lI 135 (4 créditos). Redação avançada dedocumentos acadêmicos baseados em pesquisas.Ciência política 203 D - Relações internacionais (3créditos). Uma comparação e questões globais e políticas de gruposmundiais com interesses semelhantes e/ ou contrários.Era oficial. Agora eu era uma universitária. Bem, universitária eencarregada de quebrar antigas maldições indianas em meioexpediente, pensei, lembrando-me de que o Sr. Kadam continuavacom suas pesquisas. Ia ser difícil me concentrar nas aulas, nosprofessores e nos trabalhos depois de tudo o que havia acontecido naÍndia. Era estranho saber que eu deveria voltar à minha antiga vida noOregon. De certa forma, eu parecia não mais me ajustar a ela.Para minha sorte, as aulas na Western Oregon seriaminteressantes, em especial as de religião e magia. O Sr. Kadam tinhaescolhido disciplinas que provavelmente eu mesma iria escolher -exceto latim. Franzi o nariz. Nunca fui muito boa em línguas. Penaque a universidade não oferecia nenhum curso de algum idiomaindiano. Seria bom aprender híndi, principalmente s eu voltar à Índiaalgum dia e me dedicar às outras três tarefas indicadas na profecia deDurga para quebrar a maldição do tigre. Talvez...Nesse instante, o rádio começou a tocar "I Told You So" deCarrie Underwood. Ouvir aquela letra me fez chorar. Enxugando umalágrima, pensei que ele provavelmente encontraria outra pessoa muito em breve. Eu não me aceitaria de volta se estivesse em seulugar. Pensar nele, mesmo por um minuto, era doloroso demais. Caleiminhas lembranças, guardando-as numa minúscula fenda no meucoração. Então as cobri com um monte de pensamentos novos. Penseina universidade, em minha família adotiva e no fato de estar de voltaao Oregon.Vou ter que me manter ocupada, decidi. Esta será a minhasalvação. Vou estudar feito louca, visitar os conhecidos e... e ficar comoutros caras. Isso! É o que vou fazer. Vou sair com outras pessoas e memanter ativa, assim estarei a cansada demais para pensar nele. A vidavai seguir em frente. Tem que seguir.Quando fui para a cama já era tarde e eu estava exausta. Fizum carinho em Fanindra, deslizei para debaixo dos lençóis e dormi.No dia seguinte meu celular novo tocou. Era o Sr. Kadam, queparecia ao mesmo tempo animado e decepcionado.- Olá, Srta. Kelsey - disse ele, alegremente. - Fico muitofeliz em saber que chegou em casa em segurança. Está tudo emordem e a seu contento?- Eu não esperava nada disso - repliquei. - Acho que nãomereço tanto. a Me sinto mal...- Nem pense nisso. Foi um prazer providenciar tudo paravocê.Vencida pela curiosidade, perguntei:- Como está indo com a profecia? O senhor já a desvendou?- Estou tentando traduzir o restante do monólito que vocêsencontraram. a Mandei alguém até o templo de Durga para fotografaras outras colunas. Parece que cada uma delas representa um dosquatro elementos: terra, ar, água e fogo. - Faz sentido - comentei, lembrando-me da profecia deDurga. - A coluna original que encontramos devia estar relacionadaà terra, pois mostrava lavradores fazendo oferendas de frutas e grãos.Além disso, Kishkindha era subterrânea e o primeiro objeto queDurga nos pediu que encontrássemos foi o Fruto Dourado.- Exato, mas acabamos descobrindo que existiu uma quintacoluna que foi destruída há muito tempo. Ela representava oelemento espaço, o que é comum na fé hindu.- Bem, se existe alguém capaz de decifrar o que virá emseguida, esse alguém é o senhor. Obrigada por ligar para saber demim - acrescentei.Antes de desligar, prometemos voltar a nos falar em breve.Peguei meus livros novos, estudei por cinco horas e depois fuiaté uma loja de brinquedos comprar tigres de pelúcia laranja comlistras pretas para Rebecca e Sammy, já que eu tinha me esquecidocompletamente de trazer alguma coisa da Índia para eles. Agindocontra o bom senso, também acabei comprando um tigre de pelúciabranco, grande e caro.De volta à casa, abracei o tigre e enterrei meu rosto em seupelo. Era macio, mas o cheiro não combinava. O cheiro dele eramaravilhoso, um misto de sândalo e cachoeira. O bicho de pelúcia eraapenas uma réplica. Suas listras eram diferentes e os olhos eramvítreos - de um azul fosco, sem vida. Os olhos dele eram de umazul-cobalto vivo.O que há de errado comigo? Eu não devia ter comprado isso.Assim vai ficar ainda mais difícil esquecê-lo.Deixando de lado as emoções, separei umas roupas e mearrumei para ao visitar minha família adotiva.Ao atravessar a cidade, peguei o caminho mais longo a fim deevitar o local em que o circo fora montado e trazer à tona mais lembranças dolorosas. Quando parei na frente da casa de Mike eSarah, a porta se escancarou. Mike veio em minha direção... mas nãopôde resistir a dar uma olhada mais de perto no Porsche e passoucorrendo por mim em direção ao carro.- Kelsey! Posso? - perguntou ele, timidamente.- Divirta-se - respondi, rindo.O mesmo Mike de sempre, pensei e joguei-lhe as chaves paraque ele desse n. umas voltas.Sarah passou o braço por minha cintura e me conduziu paradentro de casa.- Estamos tão felizes em ver você! Nós dois estamos! -gritou ela, franzindo a testa para Mike, que acenou alegremente antesde sair de ré da garagem - Ficamos preocupados depois da suapartida para a Índia porque você não telefonava muito, mas o Sr.Kadam ligava regularmente explicando o o que você estava fazendo ecomo andava ocupada.- Ah, é? E o que ele dizia exatamente? - perguntei, curiosapara saber a história que ele tinha inventado.- Ele falou sobre seu novo emprego e que a partir de agoravocê vai para lá é nas férias de verão ajudá-lo em vários projetos. Eunão tinha a menor ideia de que você se interessava por estudosinternacionais. Essa é uma área maravilhosa. Muito fascinante. Eletambém disse que, quando você se formar, poderá trabalhar naempresa dele. É uma oportunidade fantástica!Sorri para ela.- É, o Sr. Kadam é ótimo. Eu não poderia querer um chefemelhor. Ele me trata mais como neta do que como funcionária, e memima demais. Você viu a casa e o carro, e ainda tem a universidade... - Ele falava de você com muito carinho ao telefone. Atéadmitiu que acabou se tornando dependente de você. É um homemmuito simpático. Também declarou que você é... como foi mesmo queele disse... "um investimento que trará uma grande recompensa nofuturo"Lancei um olhar inseguro a Sarah.- Espero que ele esteja certo quanto a isso.Ela riu e em seguida ficou séria.- Nós sabemos que você é especial, Kelsey, e que merececoisas maravilhosas. Talvez esta seja a forma de o Universocompensar a perda dos seus pais. Embora eu saiba que nada irásubstituí-los.Fiz um gesto afirmativo com a cabeça. Ela estava feliz pormim. E saber que eu estaria respaldada financeiramente para vivercom conforto por conta própria devia ser um grande alívio paraminha família.Sarah me abraçou e tirou do forno um prato que exalava umcheiro estranho. Ela o colocou em cima da mesa e disse:- Agora vamos comer!Fingindo entusiasmo, perguntei:- Então... o que temos para o jantar?- Lasanha integral orgânica de espinafre com tofu e sementede linhaça.- Hum, mal posso esperar - falei, forçando um meio sorriso.Pensei com carinho no mágico Fruto Dourado que eu tinhadeixado na Índia - o objeto divino que podia fazer a comida maisdeliciosa aparecer instantaneamente. Com ele nas mãos de Sarah, talvez até uma refeição saudável ficasse gostosa. Provei a lasanha como dedo. Pensando bem...Samuel, de 4 anos, e Rebecca, de 6, entraram correndo nacozinha, saltitando e querendo chamar minha atenção. Abracei osdois e os levei para a mesa. Então fui até a janela para ver se Mike játinha voltado. Ele havia acabado de estacionar o Porsche e vinhaandando de costas na direção da porta, olhando para o carro.- Mike, hora do jantar - gritei da janela.Ele respondeu por sobre o ombro, sem tirar os olhos do carro:- Claro, claro. Já vou.Sentei-me entre as crianças, servi um pouco de lasanha paracada uma e peguei uma fatia minúscula para mim. Sarah ergueu asobrancelha e justifiquei minha pequena porção dizendo que comeramuito no almoço. Mike enfim entrou e começou a tagarelaranimadamente sobre o Porsche. Então perguntou se poderia pegar ocarro emprestado para sair com Sarah numa sexta à noite.- Claro. Eu posso vir e tomar conta das crianças.Ele sorriu, radiante, enquanto Sarah revirava os olhos.- Com quem você está planejando sair? Comigo ou com ocarro? - perguntou.- Com você, é claro, minha querida. O carro é só uma vitrinepara a linda mulher sentada ao meu lado.Sarah e eu nos entreolhamos, reprimindo o riso.- Boa, Mike - zombei.Depois do jantar fomos para a sala e dei os tigres de pelúcialaranja às crianças. Elas soltaram gritinhos de alegria e se puseram acorrer ao nosso redor, rugindo uma para a outra. Sarah e Mike mefizeram todo tipo de pergunta sobre a Índia e eu falei sobre as ruínas de Hampi e a casa do Sr. Kadam. Tecnicamente, a casa não era dele,mas eles não precisavam saber disso. Então me perguntaram sobrecomo estava indo a adaptação do tigre do circo à, Sr. Maurizio aonovo lar.Fiquei paralisada por um instante, mas em seguida disse queele estava indo bem e que parecia muito feliz lá. Por sorte, o Sr.Kadam havia explicado que ficávamos fora com frequência,explorando ruínas indianas e catalogando artefatos. Ele dissera que eutrabalhava como sua assistente, mantendo o registro de suasdescobertas e fazendo anotações, o que não estava muito longe daverdade. Isso também explicava por que eu escolhera incluir historiada arte em meus estudos.Estar com eles era divertido, mas também me esgotava, pois euprecisava tomar cuidado para não me distrair e deixar escapar algoestranho demais. Eles nunca acreditariam em todas as coisas quehaviam me acontecido. Às zes eu mesma tinha dificuldade emacreditar.Sabendo que dormiam cedo, peguei minhas coisas e medespedi. Dei um abraço em cada um e prometi que voltaria nasemana seguinte.Quando cheguei em casa passei algumas horas estudando eentão tomei um banho quente. Enfiando-me na cama no quartoescuro, arquejei quando minha mão esbarrou em pelo. Então melembrei da minha compra, empurrei o tigre de pelúcia para os pés dacama e enfiei a mão entre o rosto e o travesseiro.Eu não conseguia parar de pensar nele. Perguntava-me o queestaria fazendo naquele momento e se pensava em mim ou sentiaminha falta. Estaria andando pela selva úmida e abafada? Lutandocom Kishan? Eu voltaria à India algum dia? Aliás, será que era issomesmo que eu queria? Todas as vezes que eu empurrava um pensamento para ofundo da mente, outro surgia no lugar. Eu não conseguia vencê-los;eles continuavam pipocando, vindos do meu subconsciente.Suspirando, estendi o braço, agarrei a perna do tigre de pelúcia epuxei-o de volta. Abraçando-o, enterrei o nariz em seu pelo eadormeci com a cabeça em suas patas.

O Resgate do TigreWhere stories live. Discover now