Retorno

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  Envolta em seus braços eu ouvia meus batimentos cardíacos.Quando me tocou, todas as emoções que eu vinha contendotransbordaram e inundaram meu corpo, preenchendo lentamente ovazio em meu peito.Eu me senti desabrochar e crescer com novo alento. Ren era osol e a ternura que ele me dedicava era a água que proporcionava avida. Uma parte dormente de mim explodiu, viva e pulsante, estendeuraízes profundas, abriu folhas verdes e espessas e disparou ramosanelados, unindo-nos ainda mais.Sarah chamou da cozinha, lembrando-me de que existia ummundo além de nós dois.— Kelsey? Kelsey? Quem é?Voltando à realidade, eu me afastei. Ele me soltou, masdeslizou a mão pelo meu braço e entrelaçou os dedos nos meus. Euestava muda. Minha boca se abriu para responder, mas não conseguifalar uma palavra sequer. Ren notou minha dificuldade e anunciou sua chegada.— Com licença. Vocês são o Sr. e a Sra. Neilson?Tanto Mike quanto Sarah pararam o que estavam fazendo aodirigiu-lhes seu sorriso arrasador e estendeu a mão.— Olá. Sou o neto do Sr. Kadam, Ren.Ele apertou calorosamente a mão de Mike e então á estendeupara Sarah. Quando Ren voltou seu sorriso para ela, Sarahenrubesceu, nervosa corno uma adolescente. Saber que eu não era aúnica mulher a ficar abobada quando ele estava por perto fez com queeu me sentisse melhor. Ele exercia um efeito hipnótico sobremulheres de todas as idades.— Oi, Ren — disse Mike. — Que coincidência. Ei, Kelsey,aquele tigre nãoEu me adiantei.— Ah, é. Engraçado, não? — Olhei para Ren e o apontei com opolegar. — Mas Ren na verdade é só o apelido dele. Seu nome mesmoé...Al. — Dei-lhe um soco no braço. Não é mesmo, Ai?Ele franziu as sobrancelhas, confuso.— É, sim, Kelsey. — Então voltou-se novamente para Mike eSarah. — Na verdade, é Alagan, mas podem me chamar de Ren.Todos me chamam assim.A essa altura Sarah já havia se recuperado.— Ren, por favor, entre e conheça as crianças.E sorriu para ela novamente e disse:— Eu adoraria. Sarah respondeu reprimindo uma risadinha infantil e ajeitandoo cabelo, Ren se abaixou para pegar vários pacotes grandes que elehavia empilhado junto á porta, enquanto eu seguia direto para a sala.Enquanto Mike ajudava Ren, Sarah veio até mim e sussurrou:— Kelsey, quando vocês dois se conheceram? Por um instante,pensei que esse finalmente conhecendo Li. O que está acontecendo?Fitei a árvore de Natal enquanto murmurava:— É o que eu gostaria de saber.Os homens entraram na sala, onde Ren tirou o sobretudo corde carvão e o pendurou numa cadeira. Ele vestia calça jeans e umacamisa polo cinza de mangas compridas e zíper, que modelava seupeito e seus braços.— Quem é Li? — perguntou Ren.— Como você... — Fechei a boca rapidamente. Eu havia meesquecido de sua audição de tigre. — Li é... é ... um cara... que euconheço.Sarah ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada.Ren me observou com atenção, esperou educadamente que eume sentasse e então se acomodou no sofá ao meu lado. No instanteseguinte as crianças estavam em cima dele.— Eu trouxe presentes para vocês dois— disse, em tomconspiratório. — Vocês podem abri-los juntos?Ás crianças fizeram que sim com a cabeça, sérias, e ele riu eentregou a elas uma caixa grande. Elas a abriram freneticamente etiraram dali uma coleção de livros do Dr. Seuss. A princípio os livrosme pareceram estranhos. Peguei um deles e descobri por quê. — Você comprou exemplares raros, da primeira edição! —sussurrei para ele. — Para crianças? Devem valer milhares de dólarescada um!Ele prendeu uma mecha de cabelo atrás da minha orelha e seinclinou.— Tenho em casa uma coleção igualzinha para você —sussurrou. — Não seja ciumenta.Meu rosto ficou vermelho vivo.— Não foi isso que eu quis dizer.Ele riu e pegou o presente seguinte. Mike olhava a todoinstante pela janela o carro de Ren.— Ren, estou vendo que você dirige um Hummer.Ren ergueu os olhos para Mike.— Isso mesmo.— Acha que pode me levar para dar uma volta? Quer dizer...sabe, eu sempre quis andar num desses.Ren esfregou o queixo.— Claro, só não posso hoje. Tenho que me instalar em minhanova casa.— Ah... você vai ficar aqui por um tempo?— É o que pretendo fazer, pelo menos este semestre. Eu mematriculei em algumas disciplinas na Western Oregon University.— Bem, isso é ótimo. Vai frequentar a mesma universidade deKelsey.Ren sorriu.— É. Talvez a gente se esbarre por lá. Mike voltou a atenção para o carro novamente com um grandesorriso no rosto. Sarah me observava atenta. Tentei manter umaexpressão neutra, mas, por dentro, eu era um amontoado incoerentede perguntas.O que ele está pensando? Vai ficar aqui? Onde? Vai para afaculdade comigo? O que eu vou fazer? Por que ele está aqui?Ren deslizou uma grande caixa para Sarah e Mike.— Este é para vocês dois.Mike ajudou Sarah a abrir a embalagem e tiraram dali umabatedeira vermelha novinha em folha, com todo tipo de acessóriosque se pode imaginar. Eu não ficaria surpresa se Sarah pudesse criaruma escultura de gelo com aquela coisa. Ela começou a falar cheia deentusiasmo sobre todas as coisas orgânicas e sem trigo que agorapoderia fazer.Ren pegou um pacote menor e o entregou a mim.— Este é do Sr. Kadam.Abri e encontrei exemplares encadernados em couro doMahãbhãrata, da Índia, do Romance dos três reinos, da China, e de Oconto de Genji, do Japão, todos traduzidos para o inglês. Tambémhavia uma breve carta me desejando feliz Natal.Corri a mão sobre as capas de couro e planejei ligar para elemais tarde e lhe agradecer.Ren me entregou outro presente.— Este é de Kishan.Sarah ergueu os olhos de sua batedeira e perguntou:— Quem é Kishan?— Kishan é meu irmão mais novo — respondeu Ren. Sarah me lançou um olhar maternal de repreensão, ao qualreagi dando de ombros timidamente. Eu não havia falado nem de Rennem de Kishan para ela, que devia estar se perguntando como eupoderia deixar de lembrar de alguém como ele.Desfiz o embrulho e encontrei uma caixinha de joias daTiffany's. Dentro havia um delicado colar de ouro branco, O cartãohavia sido escrito à mão, muito capricho:Oi, Kells,Estou com saudade.Venha logo para casa.Achei que você fosse gostar de algo maisfeminino para usar com meu amuleto.Também tem um presente extra na caixa,para o caso de você precisar.KishanDeixei o cordão de lado e vasculhei a caixa. Encontrei umpequeno cilindro envolto em papel fino. Desenrolando-o, um friorecipiente de metal caiu na palma da minha mão. Era uma latinha despray de pimenta. Nele, Kishan havia colado uma imagem de um tigrecom um círculo cortado ao meio sobre o rosto. No alto, liam-se aspalavras "Repelente Contra Tigres" em letras grandes e negras.Eu ri e Ren o tomou de mim. Depois de ler o rótulo, ele franziua testa e jogou a lata de volta na caixa. Abaixando-se, pegou mais umpacote.— Este é meu. Suas palavras me deixaram alerta. Olhei rapidamente paraavaliar a expressão de Mike e de Sarah. Mike parecia contente, alheioà tensão que eu sentis, mas Sarah estava mais ligada e me observavacom atenção. Fechei os olhos por um segundo, rezando para que oque quer que houvesse naquela caixa não motivasse um bilhão deperguntas.Deslizei os dedos sob o elaborado papel de presente e desfiz oembrulho.Levando a mão ao interior da caixa, senti algo de madeira lisa epolida. Lá dentro havia um porta-joias entalhado à mão.Ren se inclinou na minha direção.— Pode abrir.Corri a mão nervosamente pela tampa e a abri com cuidado.Havia fileiras de minúsculas gavetas, forradas com veludo, e dentro decada gavetinha uma fita de cabelo enrolada.—As partes são soltas, está vendo?Ele ergueu a seção superior e a seguinte. Havia cinco seções,com cerca de 40 fitas por seção.— Todas as fitas são diferentes. Não há nenhuma cor repetidae tem pelo menos uma de cada um dos principais países do mundo.Atônita, eu disse:—Ren... eu...Levantei a cabeça. Mike não via nada de extraordinário nacena. Ele devia achar que uma coisa assim acontecia todos os dias.Sarah olhava para Ren com outros olhos. Suas expressões de suspeitae preocupação haviam desaparecido.Com um pequeno sorriso de aprovação, ela disse: — Parece que você conhece Kelsey muito bem, Ren. Ela adorafitas de cabelo. — De repente Sarah pigarreou, pôs-se de pé e nospediu que olhássemos as crianças enquanto eles iam dar umacorridinha. Eles nos trouxeram duas canecas de chocolate fumegantee desapareceram escada acima, indo trocar de roupa. Embora eles seexercitassem sempre, em geral faziam uma pausa no Natal. Será queela estava tentando nos dar algum tempo a sós? Eu não sabia se deviaabraçá-la ou implorar para que ficasse.A caixa ainda estava no meu colo e eu manuseavadistraidamente uma fita quando os dois saíram correndo pela portacom um aceno.Ren tocou minha mão.— Você não gostou?Olhei dentro de seus olhos azuis e disse, a voz rouca:— É o melhor presente que já ganhei.Ele sorriu, radiante, pegou minha mão e depositou um beijoem meus dedos.Voltando-se para as crianças, perguntou:— Quem quer ouvir uma história?Rebecca e Sammy escolheram um livro e subiram no colo deRen. Ele envolveu cada um deles com um braço e começou a ler. Sóempacou numa palavra, mas as crianças o ajudaram, e a partir deentão ele leu certinho. Eu estava impressionada. O Sr. Kadam deve tê-lo ensinado a ler inglês.Ren convenceu Sammy a segurar o livro para ele e me agarroucom o braço livre, Ele me puxou contra seu corpo, de modo queminha cabeça :cansasse em seu ombro. Então correu os dedos,provocante, para cima e baixo em meu braço. Quando Mike e Sarah voltaram, levantei de um salto e comeceia recolher minhas coisas numa louca correria. Nervosa, olhei para Rene o peguei me observando com o olhar ligeiramente divertido. Mike eSarah nos agradeceram e me ajudaram a levar as coisas para o carro.Ren também se despediu e ficou minha espera do lado de fora.Sarah me dirigiu um olhar que dizia: "Você tem explicações adar, mocinha." Então fechou a porta e nos deixou no frio dedezembro. Estávamos finalmente sozinhos.Ren tirou uma das luvas e traçou o contorno do meu rosto comos dedos cálidos.— Vá para casa, Kells. Não me faça perguntas agora. Este não éo lugar apropriado. Vamos ter tempo suficiente mais tarde. Encontrovocê lá.— Mas...— Mais tarde, rajkumari.Ele tornou a colocar a luva e se encaminhou para o Hummer.Quando foi que ele aprendeu a dirigir? Fiz a volta com meucarro e fiquei observando o Hummer pelo retrovisor até eu virarnuma rua secundária e ele aparecer do meu campo de visão.Milhares de indagações martelavam minha cabeça e percorri alista na subida da colina. A estrada estava parcialmente coberta degelo. Deixei de lado as perguntas urgentes para me concentrar nadireção.Quando dobrei a curva e vi minha casa, percebi que algumacoisa estava diferente. Levei um minuto para descobrir o que era:havia cortinas na janela da outra casa geminada. Alguém havia semudado para lá.Estacionei na garagem e andei até a porta de entrada da outracasa. Bati, mas ninguém respondeu. Girando a maçaneta, encontrei a porta destrancada. A casa estava mobiliada quase da mesma maneiraque a minha, só que em cores mais escuras, mais masculinas. Quandovi o velho bandolim descansando no sofá de couro, minhas suspeitasforam confirmadas. Ren estava se mudando para aquela casa.Fui até a cozinha, encontrei a despensa e a geladeira vazias e vique na parte inferior da porta dos fundos havia sido adaptada umaportinhola grande demais.Humm... isso não vai impedir a entrada de um ladrão. Ele poderastejar e entrar. Mas acho que teria uma bela surpresa se tentasseroubar alguma coisa aqui.Corri para minha casa, fechando a porta, sem me dar aotrabalho de olhar no segundo andar ou verificar o closet em busca daspeças de grife que eu sabia que encontraria por lá. Não havia a menordúvida de que Ren era meu novo vizinho.Na verdade, eu tinha acabado de tirar os sapatos e o casacoquando ouvi o que só podia ser o Hummer entrando na outragaragem. Eu o observei pela janela. Ren era um bom motorista. Dealguma forma conseguira manobrar o veículo imenso entre os galhossalientes que poderiam arranhar a pintura.Ouvi o ruído de seus passos no caminho congelado enquantoele se dirigia à minha porta.Deixando-a aberta para ele, fui para a sala de estar, sentei-mena poltrona reclinável com os pés dobrados sob o corpo e cruzei osbraços diante do peito. Eu sabia que os especialistas em linguagemcorporal diriam que essa era uma postura defensiva clássica, mas nãome importava.Eu o ouvi fechar a porta, tirar o casaco e pendurá-lo. Entãofinalmente entrou na sala. Ele estudou meu rosto por um brevemomento e então correu a mão pelo cabelo, sentando-se diante demim. Seu cabelo estava mais comprido do que na Índia. Fios negros esedosos caíam-lhe na testa e ele os jogou para trás, irritado. Parecia major, mais musculoso do que eu me lembrava. Deve estar sealimentando melhor do que antes.Ficamos nos entreolhando em silêncio por vários segundos.— Então... você é o meu novo vizinho — eu disse, por fim.Ele suspirou suavemente. — Não consegui mais ficar longe de— Eu não sabia que você estava tentando ficar longe de você.— Foi o que você me pediu. Eu estava tentando respeitar seudesejo. Queria lhe dar tempo para pensar. Para clarear a mente.Para... ouvir seu coração.Eu certamente tivera tempo para pensar. Infelizmente, meuspensamentos continuavam confusos. Eu não havia conseguidoraciocinar desde que deixara a Índia. E não tinha dado ouvidos ao meucoração desde que acordara ao lado de Ren em Kishkindha. Faziameses que eu me desligara do meu coração.— Ah. Então seus sentimentos não... mudaram?— Meus sentimentos estão mais fortes do que nunca.Seus olhos azuis estudaram meu rosto. Ele afastou o cabelodos olhos e se inclinou para a frente.— Kelsey, cada dia que você ficou longe de mim foi umaagonia. Eu fiquei louco. Se o Sr. Kadam não tivesse me mantidoocupado cada minuto de cada dia eu teria tomado um avião nasemana seguinte. Eu ouvia pacientemente enquanto ele me instruía,mas só tenho seis horas como humano. Como tigre, abri um caminhono tapete do meu quarto de tanto andar de um lado para outro, horaapós hora. Ele quase pegou um rifle de caça para me aplicartranquilizante. Nada me acalmava. Eu estava sempre inquieto, umanimal selvagem sem... sem sua fêmea.Remexi-me, nervosa, e mudei de posição na cadeira. — Eu disse a Kishan que precisava treinar para trazer minhashabilidades de luta de volta ao padrão esperado. Lutávamos o tempotodo, tanto como homens quanto como feras. Treinávamos comarmas, garras, dentes e com as mãos. Praticar com ele foiprovavelmente a única coisa que me manteve são. Eu desabava notapete todas as noites, ensanguentado, exausto, esgotado. Mas, aindaassim.., podia sentir você.Ele me fitou antes de prosseguir.— Mesmo do outro lado do mundo eu muitas vezes acordavacom o seu cheiro à minha volta. Eu ansiava por você, Kells. Por maisque Kishan me surrasse, a dor de perdê-la não diminuía. Eu sonhavacom você e estendia a mão para tocá-la, mas você estava sempre forado meu alcance. Kadam ficava me dizendo que era melhor assim eque eu tinha coisas a aprender antes de poder vir para o Oregon. Eledevia estar certo, mas não era o que eu queria ouvir.— Mas, se você queria ficar comigo, então... por que nãotelefonou?— Era o que eu queria fazer. Era uma tortura ouvir sua voztoda semana quando você ligava para Kadam. Eu ficava esperando aolado dele todas as vezes, torcendo para que pedisse para falar comigo,mas você nunca pediu. Eu não queria pressioná-la. Queria respeitarseu desejo. Queria que a decisão fosse sua.Que ironia. Tantas vezes eu quis perguntar por ele, mas nãoconseguia fazer isso.— Você ouvia as nossas conversas ao telefone?— Ouvia. Tenho ótima audição, lembra?— Sim. Então o que... mudou? Por que vir aqui agora?Ren riu sarcasticamente. Foi graças a Kishan. Um dia, durante uma de nossas lutas, eleestava acabando comigo, como sempre. A essa altura, eu nem meesforçava mais para competir com ele. Eu queria que ele memachucasse. De repente ele parou. Andou à minha volta e me olhoude cima a baixo. Fiquei lá, parado, esperando que retomasse a luta.Então ele fechou a mão e me deu o soco mais forte de que foi capaz.— Meu Deus.— Eu simplesmente recebi o golpe, sem nem me dar aotrabalho de me defender. Em seguida, ele me socou com toda força nabarriga. Eu me recuperei e me levantei novamente diante dele, semme importar. Ele rosnou e berrou na minha cara.— O que foi que ele disse?— Muitas coisas, a maioria das quais prefiro não repetir. O quedisse de mais importante foi que eu precisava sair dessa e perguntoupor que eu não me levantava e fazia alguma coisa, já que estava tãoinfeliz.— Ele zombou de mim, dizendo que o poderoso Príncipe doImpério Mujulaain, o Sumo Protetor do Povo, o campeão da Batalhados Cem Cavalos, herdeiro do trono, fora abatido por uma garota.Gritou que não havia nada mais patético que um tigre covardelambendo suas feridas. Mas a essa altura eu não estava nem aí para oque ele falava. Nada me perturbou até ele me dizer que nossos paisficariam envergonhados, que eles haviam criado um covarde. Foi aíque tomei uma decisão.— A decisão de vir aqui.Sim. Decidi que precisava ficar perto de você. Decidi que,mesmo que você só quisesse minha amizade, eu estaria mais feliz aquido que na India sem você.Ren se levantou, ajoelhou-se e pegou minha mão. — Decidi encontrá-la, me atirar aos seus pés e implorar paraque tenha misericórdia de mim. Vou aceitar o que você decidir. Deverdade, Kelsey. Só não me peça que fique longe de você outra vez.Porque... eu não posso.Como eu poderia resistir? As palavras de Ren penetraram asfrágeis barreiras em torno do meu coração. Eu tivera a intenção deerguer uma cerca de arame farpado, mas o arame tinha pontas demarshmallow. Ele passou facilmente por minhas defesas. Ren pousoua testa em minha mão e meu coração de marshmallow se derreteu.Passei os braços em torno de seu pescoço, abraçando-o, esussurrei em seu ouvido:— Um príncipe da Índia nunca deve se ajoelhar e implorar pornada. Está bem. Você pode ficar.Ele suspirou e me apertou mais.Eu sorri com ironia.— Afinal, eu não ia querer que a sociedade protetora dosanimais viesse atrás de mim por maus-tratos a um tigre.Ele riu.— Espere aqui — disse e saiu pela porta que conectava nossascasas.Voltou com um pacote amarrado com uma fita vermelha.A caixa era comprida, fina e negra. Eu a abri e encontrei umapulseira. A corrente fina tinha um medalhão oval de ouro branco,dentro do qual havia duas fotografias: Ren, o príncipe, e Ren, o tigre.Eu sorri.— Você sabia que eu ia querer me lembrar do tigre também.Ren prendeu a pulseira em meu pulso e suspirou. — Sabia, embora eu tenha um pouco de ciúme dele. Ele passamuito mais com você do que eu.— Hum. Não tanto quanto antes. Sinto falta dele.Ele fez uma careta.— Acredite em mim, você o verá muito nas próximas semanas.Seus dedos quentes roçaram meu braço e meu coraçãoacelerou. Ele puxou meu braço até a altura de seus olhos, examinou opingente e depositou um beijo no pulso.Os olhos de Ren brilharam, maliciosos, enquanto eleperguntava:— Então... gostou?— Gostei. Obrigada. Mas... — Minha expressão mudou,mostrando tristeza. — Eu não comprei nada para você.Ele me puxou e me abraçou pela cintura.— Você me deu o melhor presente de todos: o dia de hoje. É omelhor presente que eu poderia ter desejado.Eu ri e provoquei:— Nesse caso, que porcaria de embrulho que eu fiz.— É, tem razão. É melhor eu embrulhar você devidamente.Ren pegou a colcha da minha avó no encosto da poltrona e meenrolou feito uma múmia. Eu me debati e gritei enquanto ele mepegava nos braços e me punha no colo.— Vamos ler alguma coisa, Kells. Estou pronto para outra peçade Shakespeare. Tentei ler uma sozinho, mas tive muita dificuldadecom a pronúncia das palavras.Pigarreei dentro de meu casulo. — Como pode ver, meu captor, meus braços estão presos.Ren se inclinou para fazer um carinho com o nariz em minhaorelha e de repente ficou rígido.— Tem alguém aqui.A campainha soou. Ren se levantou de um salto, me colocouem pé e me livrou da colcha antes que eu pudesse piscar. Fiquei aliparada por um instante, tonta e confusa. Então corei, constrangida.— O que aconteceu com sua audição de tigre? — sibilei.Ele sorriu para mim.— Eu estava distraído, Kells. Você não pode me culpar. Estáesperando alguém?De repente me lembrei:— Li!— Li?Fiz uma careta.— Temos um... um encontro.Os olhos de Ren escureceram e ele repetiu baixinho:— Você tem um encontro?— Tenho... — respondi, hesitante.Em minha mente disparavam pensamentos sobre o homem àminha frente e o outro, diante da porta. Ren está de volta, mas o queisso significa? E o que eu devo fazer agora?A campainha tornou a soar No mínimo eu sabia que não podiadeixar Li esperando.Voltando-me para Ren, expliquei: — Preciso ir agora. Por favor, fique aqui. Veja o que tem nageladeira e faça um sanduíche. Volto mais tarde. Por favor, tenhapaciência. E não... fique... zangado.Ren cruzou os braços diante do peito e estreitou os olhos.— Se é isso que você quer que eu faça, é o que farei.Suspirei com alívio.— Obrigada. Estarei de volta assim que puder.Calcei os sapatos e peguei o embrulho com a coleção de DVDsque havia comprado para Li. Com os lábios apertados, Ren me ajudoua vestir o casaco e foi para a cozinha. Ele se recostou na bancada comos braços cruzados e ergueu as sobrancelhas. Dirigi-lhe um sorrisodébil e suplicante e segui para a porta da frente.Senti uma pontada de culpa por ter um presente para Li enenhum para Ren mas rapidamente descartei essa sensação e abri aporta, agindo como se nada estranho estivesse acontecendo.— Oi, Li.— Feliz Natal, Kelsey — disse ele, completamente alheio aofato de que tudo na minha vida havia mudado mais uma vez.Meu encontro com Li não transcorreu como originalmenteplanejado. Devíamos ver um filme de artes marciais e depois ir para ojantar de Natal na casa da Vó Zhi. Eu estava séria e meuspensamentos insistiam em me levar a volta a Ren. Era difícil meconcentrar em Li — ou em qualquer outra coisa.— O que foi, Kelsey? Você está muito quieta.— Li, você se importa se pularmos o filme e anteciparmos ojantar? Preciso dar alguns telefonemas quando chegar em casa. Querodesejar feliz Natal a alguns amigos. Li ficou decepcionado, mas replicou alegremente, comosempre.— Ah. Claro. Isso não é problema.Aquilo não era exatamente mentira. Eu pretendia ligar para oSr. Kadam mais tarde. Porém isso não me fez sentir nem um poucomelhor por mudar nossos planos.Na casa da Vó Zhi, os garotos estavam no meio de umamaratona de um dia inteiro de jogos. Participei de alguns, mas estavadistraída e tomei decisões estratégicas ruins — tão ruins que até osrapazes comentaram.— O que você tem, Kelsey? — perguntou Wen. — Nuncadeixou que eu me safasse com uma jogada como essa.Sorri para ele.— Não sei. Melancolia de Natal, talvez.Eu estava perdendo feio, então Li pegou minha mão e melevou para a sala ir de trocarmos nossos presentes. Li e eu abrimos ospacotes ao mesmo tempo.Rasgamos os papéis e rimos muito por muito tempo.Havíamos comprado exatamente o mesmo presente para o outro. Erauma sensação boa aliviar parte da tensão que havia se acumulado.— Parece que nós dois gostamos de DVDs de artes marciais —disse ele, rindo.— Desculpe, Li. Eu devia ter pensado mais.Ele ainda estava rindo.— Não se preocupe. Ë um bom sinal. Vó Zhi diria que é umsinal de boa sorte na cultura chinesa. Significa que somoscompatíveis.— É — eu disse, pensativa —, acho que sim. Voltamos ao jogo depois de comer e joguei sem entusiasmoenquanto pensava no que ele tinha dito. Li estava certo em muitosaspectos. Nós éramos compatíveis e provavelmente combinávamosmais do que Ren e eu. Como Sarah e Mike, éramos pessoas normais. ERen... não. Ele era imortal e maravilhoso. Era perfeito demais.Eu podia facilmente visualizar uma vida com Li. Seria cômodae segura. Ele seria médico e montaria um consultório num lugartranquilo. Teríamos um casal de filhos e passaríamos as férias naDisney. As crianças fariam aulas de wushu e futebol.Comemoraríamos as datas festivas com os avós de Li e faríamoschurrascos e convidaríamos todos os seus amigos e esposas.Uma vida com Ren era mais difícil de imaginar. Não pareciaque fôssemos feitos um para o outro. Era como combinar Ken comMoranguinho. Ele precisava da Barbie. O que Ren faria noOregon?Arranjaria um emprego? O que ele colocaria no currículo?Sumo Protetor e ex-Príncipe da Índia? Ficaríamos sócios de umparque temático de animais selvagens para que ele pudesse ser aprincipal atração nos fins de semana? Nada disso fazia sentido. Maseu não podia negar meus sentimentos por Ren — não mais.Era dolorosamente óbvio que meu coração rebelde ansiava porele. E, por mais que eu tentasse me convencer a me apaixonar por Li,a verdade era que eu era sempre atraída de volta a Ren. Eu gostava deLi. Talvez um dia pudesse até vir a amá-lo. Com certeza eu não queriamagoá-lo. Não era justo.O que eu vou fazer?Depois de jogar mal por mais uma hora, Li me levou para casa.A noite caía quando ele parou na entrada da garagem. Olhei para asjanelas em busca de uma sombra familiar, mas não vi nada. A casaestava escura. Li me acompanhou até a porta.— Ei, meus olhos estão me enganando ou é um visco que estápendurado aí? — perguntou ele, apertando meu cotovelo. Olhei para cima, para o visco, e me lembrei de minha decisãode beijar Li naquela noite. Isso parecia ter sido muito tempo atrás.Agora tudo tinha mudado. Não tinha? E Ren? Podíamos mesmo ser sóamigos? Eu deveria arriscar tudo e dar uma chance a Ren? Ou optarpor algo seguro como Li? Como escolher?Eu ficara em silêncio por muito tempo e Li esperavapacientemente por zz-_ha resposta. Por fim, virei-me para ele e disse:— É,sim.Levei a mão ao seu rosto e beijei-o delicadamente nos lábios.Foi bom. Não foi o beijo apaixonado que eu havia planejado, masainda assim ele parecia feliz. Li tocou meu rosto e sorriu. Seu toqueera agradável. Seguro. Mas não chegava nem perto do que eu sentiacom Ren. O beijo de Li era uma partícula de poeira no Universo, umagota perto de uma cachoeira.Como viver com alguma coisa tão comum quando já se tevealgo tão excepcional? Acho que só aprendendo a acalentar aslembranças.Girei a chave na fechadura e abri a porta.— Boa noite, Kelsey — gritou Li, feliz. — Até segunda.Fiquei observando o carro se afastar e entrei em casa paraencarar o príncipe indiano que me esperava lá dentro.   

O Resgate do TigreWhere stories live. Discover now