Encontros

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  Encontro 1Eu não podia acreditar que o dia do meu encontro com Artietinha chegado tão rápido. Fui de carro até o campus, estacionei efiquei sentada, enrolando. Eu não queria sair com Artie. Nem umpouco. Sua persistência tinha me vencido e eu suspeitava de que nãoera a primeira vez que ele usava aquela tática.Resignada a me encontrar com ele naquela noite, me dirigi aolaboratório de idiomas. Artie estava lá, olhando para o relógio, comum pacote marrom debaixo do braço. Caminhei até ele e enfiei asmãos nos bolsos da calça.— Oi, Kelsey. Vamos. Estamos atrasados — disse ele, seguindobruscamente para o corredor. — Ainda tenho que enviar um pacotepelo correio para uma velha amiga.Ele não era apenas gordo. Era alto e dava passadas bemmaiores que as minhas. Eu precisava quase correr para acompanhá-lo. Artie atravessou o estacionamento, chegou à calçada e pôs-se a andarna direção da cidade.— Não seria melhor irmos no seu carro? — perguntei. — Ocorreio fica a quase três quilômetros daqui.— Ah, não. Não tenho carro. São caros demais.Ainda bem que vim de tênis, pensei.Artie andava em silêncio e com passos rígidos. Concluí queprovavelmente era tarefa minha fazer a conversa fluir.— Então... para quem é esse pacote?— E para a minha ex-namorada da escola. Ela frequenta outrafaculdade e eu gosto de manter contato. Ela sai com muita gente,assim como eu — gabou-se Artie. — Você precisa ver minha agenda.Tenho encontros marcados para daqui a anos.Foi a caminhada mais longa da minha vida. Tentei meimaginar andando na selva indiana, mas estava frio demais. O céuestava escuro e nublado, soprava um vento forte. Não era um climaadequado para uma caminhada. Eu tremia — mesmo de casaco — epassei o tempo ouvindo parcialmente o que Artie falava e admirandoas casas decoradas para o Halloween.Finalmente chegamos ao correio e Artie despachou seu pacote.Estávamos na Main Street e eu vi à nossa volta os vários restaurantesminúsculos localizados ali. Perguntei-me em qual deles jantaríamos.Estava faminta. Tinha me esquecido de almoçar de tão absorta nosestudos. O cheiro de comida chinesa que vinha de um lugar ali pertoera de dar água na boca.Quando Artie saiu à rua, eu estava gelada. Bati as palmas dasmãos e esfreguei uma na outra para aquecê-las. Se soubesse queficaríamos tanto tempo na rua, teria calçado luvas. Artie tinha um parde luvas de couro no bolso, mas ele mesmo as usou. Meu cérebro, sempre ávido por punição, insistia que ele teriame dado suas luvas. Droga, ele teria tirado a camisa e me dado seachasse que eu poderia precisar dela.— E agora? Para onde vamos? — perguntei.Meus olhos dispararam, esperançosos, na direção dorestaurante chinês.— De volta ao campus. Tenho uma surpresa guardada paravocê.Tentei colar um sorriso de entusiasmo no rosto.— Que ótimo.No longo trajeto de volta ao campus Arde foi falando de simesmo. Falou sobre sua infância e a família. Descreveu todos osprêmios que ganhou e mencionou que foi presidente de cinco clubes,inclusive o de xadrez. Não fez uma só pergunta sobre mim. Eu ficariasurpresa se ele soubesse meu sobrenome.Minha mente divagou para uma conversa com um homemmuito diferente.Ouvi sua voz cálida e hipnótica com muita clareza. De repenteeu me encontrava debaixo de uma árvore. A árvore sob a qual eudissera adeus. A árvore sob a qual eu olhara pela última vez seusolhos azul-cobalto. O vento frio e cortante do Oregon desapareceu eeu senti a balsâmica brisa do verão indiano soprar suavemente meuscabelos. A noite cinza e nublada não existia mais e eu olhava asestrelas cintilantes no céu noturno. Ele tocou o meu rosto e falou."Kelsey, o fato é que... estou apaixonado por você... já faz algumtempo. Não quero que você vá embora. Por favor. Por favor. Por favor.Diga que vai ficar comigo." Ele era tão lindo, como um anjo guerreiro enviado do céu.Como pude lhe negar alguma coisa, especialmente quando eu eratudo o que ele queria?"Quero lhe dar uma coisa. É uma tornozeleira. São muitopopulares aqui e escolhi esta para que nunca mais tenhamos queprocurar um sino."Meu tornozelo formigou quando me lembrei de seus dedosroçando-o."Kells, por favor. Preciso de você."Como eu pude deixá-lo?Minha mente voltou bruscamente ao presente e lutei paraconter as intensas emoções que vinham à tona quando eu mepermitia pensar nele. Enquanto Artie discorria deforma monótonasobre como vencera o campeonato de debates, eu me repreendia porpermitir que meus pensamentos me levassem a um lugar tãoperigoso. A verdade era que, mesmo que eu estivesse tendo dúvidassobre minha decisão de partir, ele não havia telefonado. Isso provavaque eu tinha tomado a decisão certa, não provava? Se ele me amasseunto quanto dizia, teria tentado entrar em contato comigo. Teria meprocurado. Teria vindo ao meu encontro. Ele precisava de espaço. Euestava certa de deixá-lo. Talvez agora eu pudesse começar a me curare esquecê-lo.Obriguei-me a voltar a atenção para Artie e me esforcei deverdade para ouvir sua conversa. Não havia a menor possibilidade deArtie ser o cara certo para mim — nem para qualquer garota, aliás —,mas isso não significava que eu estivesse sem opções. Eu ainda tinhaum encontro com Jason no dia seguinte e outro com Li na próximasemana.Quando Artie e eu chegamos de volta ao campus, meuestômago roncava alto que podia ser ouvido a três quarteirões de distância. Eu esperava ansiosamente que fôssemos logo comer nalanchonete da universidade.Ele me levou para o centro de mídia da Biblioteca Hamersly,pediu dois fones de ouvido e entregou um papel à mulher que nosatendia. Então empurrou duas cadeiras de madeira diante de umminúsculo aparelho de TV preto e branco que estava num canto.— Não é uma ótima ideia? Podemos assistir a um filme e eunão preciso gastar nem um centavo! — Ele sorriu enquanto meuqueixo caía. — Muito inteligente, você não acha?Apertei os lábios.— Ah, é, muito inteligente.Calei-me rapidamente depois disso, engolindo um comentáriosarcástico. Será que ele achava que as garotas gostavam de sertratadas dessa forma? Não que um encontro tivesse que envolvercoisas caras ou que fosse mesmo necessário gastar dinheiro. O que meaborrecia era que Artie era presunçoso em relação a tudo e nãoachava que suas acompanhantes fossem importantes o bastante paraescutá-las. Eu estava indignada e com fome. Quando o filmecomeçou, ele deslizou o fone cinzento gigantesco sobre os ouvidos eapontou para o meu.Limpei a poeira do dispositivo com a blusa, pluguei o fio ecoloquei com força os fones em cima dos ouvidos, irritadíssima porficar ali sentada por mais duas horas. Os créditos iniciais de A lendados beijos perdidos disparavam na tela e eu enviava mensagensmentais para que Gene Kelly dançasse mais rápido.Passada uma hora de filme, Artie fez um movimento. Ele aindaolhava diretamente para a tela minúscula quando colocou o pesadobraço nas costas da minha cadeira. Olhei-o pelo canto do olho. Ele tinha um sorriso afetado norosto. Imaginei que estivesse mentalmente ticando uma lista detarefas em sua agenda.• Seduzir a garota falando de outros namoradas• Impressioná-lo com o número de prêmios que vocêrecebeu• Não gastar dinheiro no encontro• Fazer a garota assistir o um filme cafona no centrode mio• Fazer comentários sobre a própria parcimônia• Pôr o braço no ombro da garota na marca exata dametade do filmeInclinei-me para a frente e fiquei numa posição desconfortável,na ponta da cadeira, durante toda a segunda metade do filme. Com adesculpa de que precisava ir ao banheiro, fiquei de pé. Ele fez omesmo e foi até a mulher no balcão. Quando passava por eles, eu oouvi pedindo que ela parasse o filme e o rebobinasse um pouquinhopara que lembrássemos onde havíamos parado.Sensacional! Isso soma mais cinco minutos a essa experiênciamaravilhosa! Eu me apressei, temendo que ele pudesse cismar dereiniciar o filme. Pensei na possibilidade de sair do prédio correndofeito louca, mas de onde estávamos sentados ele podia ver a porta dobanheiro e isso seria uma grosseria. Eu estava determinada a sofrerainda durante a última parte do filme e depois voar para casa.Finalmente, finalmente, o filme terminou e eu me levantei deum salto, como se o alarme de incêndio tivesse acabado de seracionado.— Muito bem, Artie. Foi legal. Meu carro está estacionadoaqui fora, então até segunda. Obrigada pelo filme. Infelizmente ele não entendeu a deixa e fez questão de meacompanhar até o carro. Abri a porta e mais que depressa me enfieiatrás dela.Ele pôs a mão na porta do carro e inclinou o corpo volumosona minha direção. Sua gravata-borboleta estava a poucos centímetrosdo meu nariz. Ele forjou um sorriso artificial e desajeitado.— Bem, eu me diverti muito e quero sair de novo com você napróxima — disse ele. — Que tal na sexta?Melhor cortar isto logo pela raiz.— Não posso. Já tenho outro encontro marcado.Artie insistiu, sem se intimidar.— Ele nem sequer piscou. — E sábado?Vasculhei meu cérebro freneticamente em busca de umasaída.— Hã... Eu não trouxe minha agenda, então não sei oque já tenho marcado.Ele assentiu, como se isso fizesse todo sentido.— Olhe, estou com uma dor de cabeça terrível, Artie. Vejovocê no laborario semana que vem, está bem?— Claro. Ligo para você mais tarde.Entrei rapidamente no carro e fechei a porta. Sorrindo, poissabia que nca tinha lhe dado o número do meu telefone, atravessei asruas silencio' de Monmouth e subi a colina até a tranquilidade deminha casa.ENCONTRO 2 No encontro seguinte eu estava mais bem preparada para oclima. Usava minha blusa de moletom vermelho da Western Oregone também levara um casaco mais grosso, uma echarpe de caxemiravermelha e luvas que encontrara numa gaveta. Normalmente eu teriaevitado qualquer coisa que ele tivesse comprado para mim, mas nãotinha tempo para comprar luvas novas esmo que tivesse, estariausando o dinheiro dele de qualquer forma.Encontrei Jason no estacionamento do estádio eimediatamente comecei a catalogar suas qualidades. Ele era bonito,um pouquinho mais magro e mais baixo que a média, mas não sevestia mal e era inteligente. Encostado em seu velho Corolla, ergueuas sobrancelhas, surpreso, quando me viu saltar do Porshe.— Uau, Kelsey! Que carrão!— Obrigada.— Vamos?— Vamos. Me mostre o caminho.Então nos misturamos à multidão que seguia para o campo defutebol. A maioria usava camisas vermelhas ou da Western Oregon,mas havia também as cores branco e azul-marinho do adversário, aWestern Washington University, espalhadas aqui e ali. Dois chapéusvikings se destacavam no meio da multidão. Jason me levou até umacaminhonete cercada por casais fazendo um churrasco na caçamba.Uma pequena grelha estava cheia de salsichas e hambúrgueresfumegantes.— Ei, pessoal! Quero apresentar Kelsey a vocês. Nosconhecemos na aula de antropologia.Vários rostos esticaram-se atrás dos vizinhos, tentando me ver.Acenei timidamente para eles.— Oi.Ouvi alguns "Oi, tudo bem?" e "Muito prazer' e então elesvoltaram a suas conversas, esquecendo que estávamos ali.Jason encheu um prato para mim e então abriu um cooler.— Quer uma cerveja, Kelsey?Sacudi a cabeça.— Refrigerante, por favor. Diet, se tiver.Ele me entregou um bem gelado, pegou uma cerveja para simesmo e apontou para duas cadeiras dobráveis vazias.Assim que se sentou, ele enfiou metade do cachorro-quente naboca, mastigando ruidosamente. Era quase tão ruim quanto ver umtigre comer — nas um pouco menos sangrento.Argh. O que há de errado comigo? Será que estouintencionalmente procurando coisas que me aborreçam? Eu precisomesmo relaxar ou Jennifer terá razão: vou desperdiçar minha vida.Desviei os olhos e comecei a beliscar minha comida.— Então você não é de beber, não é, Kelsey?— É, acho que não. Para começar, não tenho idade suficiente.E o álcool perdeu toda a graça para mim quando meus pais forammortos há alguns anos por um motorista embriagado.— Ah. Foi mal.Ele fez uma careta e tirou a cerveja do meu campo de visão,escondendo-a embaixo da cadeira.Droga. O que estou fazendo? Imediatamente me desculpei.— Está tudo bem, Jason. Lamento ter sido tão deprimente.Prometo que vou ser muito mais animada no jogo.— Sem problema. Nem pense mais nisso.Ele voltou a engolir a comida e a rir com os amigos. O problema foi que eu continuei a pensar naquelas coisas.Sabia que a morte dos meus pais não era algo que eu normalmentemencionaria num maneiro encontro, mas... Eu sabia que ele teriareagido de forma bem diferente Talvez porque fosse mais velho, maisde 300 anos mais velho. Ou porque não fosse americano. Talvezporque também tivesse perdido os pais. Ou porque fossesimplesmente... perfeito.Tentei pôr fim a esses pensamentos, mas não pude evitá-los.Voltei ao dia em que acordei de um pesadelo envolvendo a morte dosmeus pais e ele estava me consolar. Eu ainda podia sentir sua mãoenxugando minhas lágrimas enquanto ele me botava no colo."Shh, Kelsey Eu estou aqui. Não vou deixá-la, priya. Quietinhaagora. Mein aapka raksha karunga. Não vou deixar nada acontecercom você, priyatama." Ele havia acariciado meus cabelos e sussurradopalavras tranquilizadoras até eu sentir o sonho desaparecer.Desde então eu tivera tempo de procurar o significado daspalavras que não havia entendido na Índia. Estou com você. Voucuidar de você. Minha amada. Minha querida. Se ele estivesse aquicomigo, teria me puxado para abraço ou para o seu colo e teriacompartilhado da minha tristeza. Teria afagado as minhas costas ecompreendido meus sentimentos.Eu me sacudi. Não, não teria. Podia ter feito isso antes, masagora ele havia mudado. Ele já era e o que teria frito ou como teriareagido não tem mais importância. Acabou.Jason estava enchendo outro prato e eu tentei parecerinteressada e me envolver na conversa Meia hora depois todos noslevantamos e nos dirigimos campo de futebol.Era bom ficar ao ar livre no clima fresco do outono, mas osbancos estavam frios e meu nariz, congelado. O frio não pareciaincomodar Jason e os amigos. Eles ficavam em pé e torciam muito.Tentei fazer o mesmo, mas não sabia que estava aplaudindo: o jogo estava muito distante para que eu sequer enxergasse a bola. Eu nuncame interessara muito por futebol americano. Preferia de longe filmese livros.Olhei para o painel do placar. O primeiro tempo estava seesgotando. Dois minutos. Um minuto. Vinte segundos. Ufa! O timersoou e as duas equipes deixaram o campo correndo. O desfile deboas-vindas teve início e vários carros antigos percorreram operímetro externo do campo. Garotas bonitas vestidas com chiffon eseda empoleiravam-se no encosto dos bancos traseiros, acenandopara a multidão.Jason se juntou aos outros caras que davam assoviosestridentes, expressando admiração. O aroma de sândalo subiu pelaarquibancada e uma voz aveludada sussurrou em meu ouvido: "Você émais bonita do que qualquer uma daquelas mulheres."Virei bruscamente a cabeça, mas ele não estava atrás de mim.Jason ainda se encontrava de pé, gritando junto aos amigos. Deixeimecair no banco. Ótimo. Agora estou tendo alucinações. Pressioneios nós dos dedos contra a cabeça na esperança de que a pressão oempurrasse de volta aos recônditos da minha mente.Quando o segundo tempo do jogo começou, parei de tentarfingir entusiasmo. Esse era o segundo encontro que me transformavaem picolé. Meu corpo foi lentamente se congelando no banco ecomecei a bater o queixo. Depois do jogo, Jason me acompanhou atéo carro e pôs o braço desajeitadamente em meu ombro,massageando-o para tentar me aquecer, mas ele fez muita força edeixou meu ombro dolorido. Eu nem me dei ao trabalho de perguntarquem havia ganhado.— Adorei conhecer você melhor esta noite, Kelsey.Será que ele tinha mesmo me conhecido melhor?— É, também achei legal. — Então posso ligar para você outro dia?Ponderei por um instante. Jason não era um cara ruim; eraapenas um cara. Primeiros encontros costumavam mesmo serconstrangedores, então decidi lhe dar outra chance.— Claro. Você sabe onde me encontrar.Dirigi-lhe um sorriso morno.— Certo. Vejo você na aula segunda-feira. Tchau.—Tchau.Ele voltou para seu grupo de amigos barulhentos e eu meperguntei se tínhamos alguma coisa em comum.ENCONTRO 3Antes de que eu me desse conta, chegou o Halloween — e,com ele, o encontro com Li.Havia alguma coisa nele que fazia com que eu me sentissemuito à vontade. Ele era mais divertido que Jason e, a contragosto,admiti que era muito possível que eu me sentisse mais relaxada napresença de Li porque ele me lembrava um pouco o homem que euestava tentando esquecer.Relutante, puxei a porta do closet que jurei nunca abrir eencontrei uma blusa de mangas compridas laranja-escuro, enfeitadacom botões de madeira e uma faixa na cintura. Para combinar, calçajeans escura com lycra. Ambas me serviram perfeitamente, como setivessem sido feitas sob medida. Um par de botas escuras encontravaseno fundo do armário e, após calçá-las, dei uma voltinha na frentedo espelho. A roupa fazia com que eu parecesse alta, chique e...estilosa, o que não era o meu normal. Deixei o cabelo solto, os cachos cascateando pelas costas, paramudar um pouco. Passei um brilho alaranjado nos lábios e segui parao estúdio, tomando o cuidado de dirigir mais devagar do que dehábito para evitar alguma criança desatenta correndo atrás de doces.Li estava em seu carro ouvindo música e balançando a cabeçapara cima e para baixo. Assim que me avistou, imediatamentedesligou o rádio e saltou carro.Ele sorriu.— Uau, Kelsey! Você está linda!Eu ria fácil com ele.— Obrigada, Li. É muita gentileza sua. Se estiver pronto, possoseguir você até a casa de sua avó.Voltei para o meu carro, mas Li passou correndo por mim eabriu a porta.— Puxa, quase que eu não consigo! — Ele sorriu para mimoutra vez. — Meu avô me ensinou a sempre abrir a porta para asdamas.— Nossa, você é um perfeito cavalheiro.Ele inclinou a cabeça ligeiramente, riu e então voltou para seucarro. Dirigiu devagar também, verificando com frequência noretrovisor se eu o acompanhava nos cruzamentos. Seguimos até umbairro mais antigo, muito agradável.— Meus avós moram nesta casa — explicou Li quandoentramos. — As noites de jogos são sempre aqui porque a mesa émaior. Além disso, minha avó cozinha muito bem.Li pegou minha mão e me conduziu para uma cozinha muitobonita com cheiro mais gostoso que qualquer restaurante chinês emque eu já estivera. Uma mulher pequenina de cabelos brancos espiava dentro de uma panela de arroz. Quando ergueu a cabeça, as lentesdos óculos estavam embaçadas.— Kelsey, esta é Vó Zhi. Vó Zhi, huó Kelsey.Ela sorriu, assentiu com a cabeça e segurou meus dedosnos dela.— Olá. Muito prazer.Retribuí o sorriso.— Prazer em conhecê-la também.Li enfiou o dedo numa panela borbulhante e sua avó pegouuma colher de madeira e bateu com ela levemente em sua mão. Entãoo repreendeu em mandarim.Ele riu enquanto ela estalava a língua afetuosamente.— Até mais tarde, vó.Eu a flagrei sorrindo orgulhosa para ele quando deixávamos acozinha.Segui Li até a sala de jantar. Toda a mobília havia sido afastadapara o lado a fim de abrir espaço para a grande mesa. Em torno delaencontrava-se um grupo de garotos asiáticos que discutiamacaloradamente a colocação das peças no tabuleiro do jogo. Li melevou até o grupo.— Ei, pessoal. Esta é Kelsey. Ela vai jogar com a genteesta noite.Um garoto ergueu as sobrancelhas.— Muito bem, Li!— Agora dá para entender por que ele demorou tanto.— Está com sorte. Wen trouxe o kit de expansão. Houve vários outros murmúrios e cadeiras foram arrastadas.Pensei ter ouvido um Comentário abafado sobre trazer uma garotapara o grupo, mas não sabia dizer quem teria falado. Depois de algunsinstantes, todos se acomodaram para começar o jogo.Li sentou-se ao meu lado e me explicou as regras do jogo. Deinício eu nunca sabia se era uma decisão sábia trocar trigo por tijoloou minério por ovelhas, então podia pedir ajuda a ele. Depois dealgumas rodadas, comecei a me sentir confiante o bastante para jogarpor conta própria. Troquei duas de minhas aldeias por cidades etodos os garotos deram um gemido.Perto do fim do jogo, estava óbvio que o desfecho seria umadisputa entre mim e um garoto chamado Shen. Ele se gabou, de leve,sobre como estava perto da vitória e que eu não tinha chance.Entreguei uma ovelha, um minério e um trigo e comprei uma carta dedesenvolvimento. Era um bônus, o último do jogo.— Ganhei!Os garotos resmungaram, disseram que foi sorte deprincipiante e fizeram um estardalhaço, ameaçando recontar todos osmeus pontos só para ter certeza de que minha conta estava certa.Fiquei surpresa ao saber que haviam se passado horas. Meu estômagoroncou.Li se levantou e se espreguiçou.— Hora de comer.A avó dele havia montado um delicioso bufê para nós. Osgarotos fizeram a montanha em seus pratos com arroz frito, bolinhosde legumes e de carne, tempura de legumes e verduras e miniaturasde rolinhos primavera de camarão. Li pegou refrigerante para nós doise nos acomodamos na sala de estar.Ele prendeu seus bolinhos de carne de porco habilmente comos hashis e disse:— Então me fale sobre você, Kelsey. Alguma coisa além dowushu. O que você fez nas férias?— Ah, isso. Eu, hã... trabalhei na índia como estagiária.— Uau! Isso é incrível! O que você fazia?— Na maior parte do tempo catalogava e registrava ruínas,obras de arte e as históricas. E você? O que fez nas férias?Voltei a pergunta para ele, ansiosa para desviar o foco daconversa.— Basicamente trabalhei para o meu avô no estúdio. Estoutentando economizar para a faculdade de medicina. Eu me formei embiologia na cidade de Portland.Fiz os cálculos rapidamente, e as contas não pareciam fechar.— Quantos anos você tem, Li?Ele sorriu.— Vinte e dois. Adiantei muitas disciplinas e também fizcursos de verão. Na verdade todos os jogadores aqui sãouniversitários. Meii está estudando química, Shen, engenharia dacomputação, Wen acabou de se formar e está fazendo mestrado emanálise estatística e eu quero fazer medicina.— Vocês realmente... sabem o que querem.— E você? Está estudando o quê, Kelsey?— Estudos internacionais e história da arte. Nesse momentoestou focando a Índia — respondi, jogando outro bolinho na boca. —Mas talvez eu devesse mudar para wushu para me livrar de todasessas calorias.Li riu e pegou meu prato. Voltamos para a sala de jogos e euparei para olhar a foto de Li e do avô, Chuck. Cada um segurava trêstroféus. — Caramba. O estúdio ganhou todos esses?Li espiou a foto e enrubesceu.— Não, são todos meus. Participei de um torneio de artesmarciais.Ergui as sobrancelhas, surpresa.— Eu não sabia que você era assim tão bom. Isso é um feito etanto.— Tenho certeza de que meus avós vão lhe falar sobre isso —disse Li, me levando de volta à cozinha. — Não tem nada que elesgostem mais de fazer do que falar dos méritos de seus descendentes.Certo, Vó Zhi?Li deu-lhe um beijo no rosto e ela agitou as mãos para enxotá-lo de sua lava-louças.Os rapazes haviam definido um novo jogo que era muito maisfácil de aprender. Eu perdi, mas foi muito divertido. Quando o jogochegou ao fim, já passava da meia-noite. Li me acompanhou até ocarro na noite fria e estrelada.— Valeu por ter vindo, Kelsey. Eu me diverti muito com você.Acha que ia gostar de repetir a dose? A gente se reúne a cada 15 dias.— Claro. Parece divertido. E já que eu ganhei no primeiro jogovocê vai pegar mais leve comigo na aula de wushu? — provoquei.— Nada disso. Quando você ganha, eu pego ainda maispesado.Eu ri.— Então me lembre de perder da próxima vez. E o queacontece quando você ganha?Ele sorriu. — Hum... vou pensar.Ele recuou e ficou parado sob a luz da entrada da casa,observando enquanto eu me afastava.Fui para a cama me arrastando de cansaço, pensando que, como passar do tempo, eu poderia aprender a gostar de Li. Ele eradivertido e gente boa. Eu não sentia nada por ele que não fosseamizade, mas talvez isso pudesse mudar no futuro. A vida normalestava começando a parecer... normal outra vez. Virei-me de lado, meenrolei na colcha da minha avó e acidentalmente derrubei meu tigrebranco da cama.Por alguns instantes considerei a possibilidade de deixá-lo nochão ou colocá-lo no armário. Fiquei deitada imóvel, olhando o teto,tentando reunir forças para fazer isso. Minha decisão durou apenascinco minutos e eu me repreendi por minha fraqueza. Estiquei-me nacama, peguei o tigre de pelúcia e o aconcheguei junto ao peito, medesculpando pelo simples fato de ter tido tal pensamento.   

O Resgate do TigreWhere stories live. Discover now