Acabou que o ônibus saiu seis e meia.
As luzes amarelas dos postes deixava tudo ali com um ar de saudade. Se não tivesse subido e fingido que estava dormindo, não sei se conseguiria.
Dei uma olhada um pouco depois de subir e a mãe ainda estava lá, com Mateus a tiracolo. Disse pra ela que eu ia ficar bem e que ela podia ir mas ela não arredou o pé.
Era bem umas seis quando Fabiano chegou. Ouvi quando preguntou pra mãe onde eu estava. Logo ele sentava do meu lado.
- Não deu pra sair mais cedo, irmão.
- Muito corrido lá?
- Teve um carregamento que chegou e o Orestes encrespou e não deixou eu ir embora. Aí ficou chorando que ia ter que conferir tudo sozinho até que Seu Romão ouviu. Foi aquela né.
- Você não pode falar mal de seu chefinho.
- Ele só tem dois mes a mais que eu. Tem muito tempo que vocês chegaram?
- Eu e a mãe chegamo era bem umas cinco horas, esses ônibus sempre atrasam.
- Deve sair quase sete, pela vontade que o velho Antônio tá carregando as malas.
- O negócio é a Justina, parece que ela vai embora pra casa da irmã dela lá no Pará, aí tá levando quase que a casa inteira no ônibus.
- Bom, agora é menos uma fofoqueira na cidade.
- Só vai ficar faltando umas seiscentas.
Fabiano ri. Tenta deitar o banco, que trava. Ele bate no banco mas só sai poeira. Ele olha pelo corredor, a mulher colocando uma sacola com duas garrafas d'agua no pé do banco dois bancos pra frente, se debruça e olha pro fundo, uma mulher fazendo tricô, um matuto mascando fumo, uma criança catarrenta deitada no colo da mãe. Um rapaz mais ou menos da idade dele saindo do banheiro.Seu nariz arde com o cheiro azedo que sai de lá.
- Ainda bem que você não pegou os banco lá do fundo.
- Tem desconto, sabia?
- Imagino mesmo. Você vai aguentar viajar nessa banheira por três dias?
- Dois e meio. Ouvi aquela senhora lá do fundo falando com uma irmã dela pelo telefone, só vai três dias se o ônibus quebrar.
- A mãe não te ensinou que é feio escutar conversa alheia não?
- Como é que não ouve? Se brincar até o povo lá na igreja deu de ouvir ela falando.
Fabiano ri e se vira pra olhar a tal da mulher.
- Fabiano, antes que você pergunte, a casa lá é certeza.
O irmão olha para ele e suspira.
- Sabe, tenho inveja de você.
- Do quê, do banco confortável ou do cheiro?
- Não, de você tá indo.
Kauê olha para o irmão mais velho.
- Ouvi a Nonata falando pra mãe que isso é burrice, não vai dar nem uma semana na capital e eu vou já correr de volta pra cá.
- Eu não teria coragem. Aquele mundo não é meu, grande demais as coisas lá.
- Tomara que dê certo.
- Vai dar certo, confia em seu irmão mais velho. Qualquer coisa você pode voltar pra trás.
Olho pra ele, tá quase chorando.
- Kauê, se eu te perguntar uma coisa, você responde eu com a verdade?
- Pode perguntar.
- Foi alguma coisa que a gente fez?
- Não, Fabiano, vocês não fizeram nada.
- Se tiver alguma coisa que eu ou a mãe fez que você não gostou, pode falar.
- Vocês sempre me mantiveram, amo vocês demais. É só que quero tentar lá na capital, talvez não dê certo, mas tenho que tentar, sabe?
- Sei sim, irmão.
Ficamos calados, olhamos a movimentação de gente lá fora. De repente, um estalo. Lá do fundo sai um "graças a Deus", surge a cabeça branca de seu Antonio.
- Ó, vocês aguentam só mais um pouco que quando a gente chegar lá em Rio Branco a gente lava esse banheiro. Deve demorar no máximo umas duas horas.
Fabiano olha pra mim.
- É, vou lá fazer a mãe parar de chorar um pouco. Viaja com Deus, Kauê.
- Fique vocês com Deus. Vou mandando mensagem avisando onde eu tô.
Fabiano me abraça pela primeira vez, meio de lado, se levanta e grita.
- Ô, seu Antônio, abre essa porta porque eu não vou viajar.
- Então vê se anda logo porque esse ônibus tem horário.
Quando o ônibus saiu engasgando me senti vazio. Olhava as casas ficando cada vez mais afastadas, mais feias.
Um menino lá atrás começou a chorar, queria a avó. Tentei dormir mas tinha buraco demais aquela estrada, toda hora um solavanco diferente.
Não deu meia hora, a gente não tinha chegado à próxima currutela e o povo lá do fundo já tava chiando. "Ô motorista, faz alguma coisa, esse banheiro tá fedido por demais".
Meu nariz estava reclamando também, um ranço azedo que chega doía.
- O pessoal que está aí no fundo, venha aqui pra frente que o cheiro aqui tá menos. O motorista reserva diz com ar de importante.
- Só se a gente sentar no colo do povo que tá aí na frente, ó o tanto que esse ônibus tá cheio.
O motorista reserva dá de ombros e se vira, olhando a estrada á frente.
- O ruim de pegar esses ônibus clandestinos é isso.
Olho pra senhora ao meu lado, toda de preto, com um véu escondendo o rosto.
- Mas o jeito é aguentar, o preço das outras é caro por demais.
- Lá isso é verdade. Meu filho, eu acho que te conheço.
- Sou filho da Raimunda, a costureira.
- Ah sim, você é o que trabalha na fármacia?
- Não, aquele é Fabiano.
- Você é o outro, o incurtido com bola.
- Esse mesmo.
- Eu e as irmãs da igreja a gente falava que você só ficava feliz se estivesse correndo atrás de bola. Fizemo até uma campanha pra que Deus te libertasse. A gente vai continuar orando. Sua mãe deu muita liberdade pra vocês, é o que falo pras irmãs da igreja.
- A mãe tava ocupada trabalhando pra cuidar da gente.
- Queria saber porque o imprestável do seu pai abandonou a sua mãe. A irmã Tonha diz que foi porque ele arrumou um rabo de saia lá pros lados de Minas. Eu não sei não, seu pai nunca gsstou de frio, daí ele vai mudar pra baixo de Rio de Janeiro? Me disseram que lá até neva, não sei não viu.
- O pai teve seus motivo.
- Não sei se você sabe mas a irmã Josefá tava querendo saber, sua mãe terminou o vestido de casamento da menina Rita?
- Não sei não.
- Eu fiquei tão triste quando fiquei sabendo, sabe? Seu irmão era apaixonadinho naquela menina. Mas eu entendo ela, quem ia querer casar com um entregaddor de fármacia, não é?
- Pois é, falando nisso, como tá seu marido.
- Eu acho muito impertinente da parte das pessoas ficar intrometendo na vida das pessoas. Você me dê licença.
Ela se levanta, toda torta porque o ônibus balança demais. Ela vai até a fundo, logo escuto os remunsgos dela reclamando do cheiro, ela passa por mim e vai pra frente.
Com um suspiro ela se senta ao meu lado, o ônibus está lotado, e os de trás foram pra frente pra escapar da catinga.
- Se você puder fazer a gentileza de não conversar comigo, eu só quero chegar no Pará com a ajuda de Deus.
- Esse ônibus não passa por lá.
Pela primeira vez, ela olha pra mim.
- Como é que é?
- Ele vai passar por Rondonia, descer pra Mato Grosso, aí chega em Goiás.
- Pois vou já falar com o motorista.
A velha já levanta gritando com o motorista.
- Graças a Deus que essa mulher saiu daqui, não estava mais aguentando ela. O rapaz atrás de mim comenta suspirando.
Acabou que ficamos duas horas a mais em Rio Branco, pra dona ~~ descer as coisas dela. Ela queria por queria que o ônibus fosse pro Pará, insistiu tanto que seu Antônio, um poço de paciencia deu um grito com ela "Má nem fudeno!", depois disso ela parece que acalmou, só perguntou se eles podiam deixar ela na rodoviária, que lá ela pegava outro ônibus.
- É claro que a gente te deixa na rodoviária, vai querer que a gente te joga com suas tralha no meio da estrada?
- O senhor me descupa, é que eu não sabia que não passava pelo Pará esse ônibus. Chegando lá eu vejo se consigo um outro que vai pra lá, pode ficar despreocupado.
- Desculpa é o cacete, pensasse nisso antes de vir torrar as paciência de quem tá trabalhando. A senhora fala com o rapaz da Xavante, fala que Seu Antonio pediu pra ele te colocar no próximo ônibus que vai pro Pará. Ele é conhecido meu, vai cobrar nada não da sehora. Agora vê se dá sossego pra nós.
Ela sentou do meu lado mas benção a Deus, não soltou um pio.
Lá chegando, teve uns que foram pro banheiro direto e uns que foram comer. O resto só saiu mesmo pra esticar as pernas. Seu Antõnio, foi chamar lá um funcionário para dar um jeito no banheiro. Voltando, foi já tirar as malas do bagageiro, eu e mais uns dois cabras nos dispomos a ajudar o Seu Antonio, tudo para nos livrar daquela mulher logo.
Quando o ônibus saiu, parece brincadeira, mas dava até prazer respirar, o ar estava leve.
Não comi nada, se pudesse nem ia usar aquele banheiro. Mal o ônibus saiu da rodoviária, era bem umas onze da noite, puxei a coberta e dormi com os pés na cadeira do lado.
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Diante dos olhos
RomanceEssa é a história de dois irmãos e dois sonhos. Kauê tem um sonho de ser um astro do futebol. Fabiano tem um desejo mais difícil, sonha com um amor que se foi. Um mais que o outro, precisa mudar de ares para conseguir o que quer. Kauê se imagina...