"A mãe ficaria espantada. Eu de pé antes das seis. Nem quando ficava de febre, de cama, cometia essas proezas".
Da janela, vejo entre os fios elétricos o sol forçando passagem em meio a noite escura. O céu fica rosa e laranja, um novo dia começa.
Pego uma camisa e calça na mochila, penteio o cabelo mais comportado pra hora da entrevista.
Eu consigo um emprego, salário pode até ser meio baixo, é só mesmo até eu conseguir um contrato com um time grande, aí estou feito.
Desço pra tomar café.
Não erro o lugar, sigo o aroma de café e pão de queijo que acaba de sair do forno. Tem um grupo de homens conversando atrapalhando a passagem à mesa central, ontem tem a comida. "Moço deixa eu pegar um par de biscoito, por favor", umas duas senhoras, de voz fina, tentam alcançar a bandeja maior.
- Os senhores vão pegar mais alguma coisa?
- Não, menino, pode pegar aí.
Eles abrem espaço, olho pra baixo e vejo um sorriso de gratidão na senhora mais magra.
O pão não é de hoje, o café parece agua de batata. Pelo menos está quente. De toda forma, não vou ficar nesse mofo por muito tempo.
Consigo até imaginar quando for dar entrevista, for falar como foi o começo, vou lembrar bem daqui. Sorrio para as paredes manchadas e vou pra rua.
Começo a ir mais longe, talvez tenha mais sorte.
- Bom dia moça, vim pra entrevista.
- Me empresta o currículo, por favor.
- Moça, eu não trouxe currículo.
- Entendi, você enviou no e-mail então, só um instante, qual seu nome mesmo?
- Meu nome é Kauê, não enviei nada não moça, só vi o aviso lá fora que estão precisando de gente e eu entrei.
- A gente só faz entrevista se tiver o currículo.
- Moça, você pode perguntar o que quiser, eu tô querendo trabalhar.
- Eu vou precisar do seu currículo, se não nem tem como fazer a entrevista.
- Tudo bem, obrigado moça.
Há gente por demais esperando para tentar fazer a entrevista, por uma vaga. Nas ruas, em quase todo sinaleiro há gente vendendo agua. Meu nariz incomoda, o tempo quente e seco.
- Boa tarde, moço, vamos almoçar?
Estava olhando as vitrines, vendo se tinha uma placa de precisa-se de funcionários quando quase atropelei a garçonete. Uma moreninha, numa calça colada preta, o uniforme tá meio apertado, um pouco de carne pra pegar.
- Boa tarde, vamos sim.
Passei a manhã andando, o sol me torrando a nuca. Precisava de uma recompensa. Passo pela morena e entro no outro mundo, ar diferente, clima outro.
Olho as pessoas em volta, nenhuma usa camiseta. Fico atrás de um senhor de camisa azul escuro, na bancada ele pega bastante salada. Pego uma colher de cada, o imitando.
- É assim, ele no bobó fica mais macio, tem o caldo. Já o camarão ao alho e óleo ele fica mais crocante. Como você colocou salmão ao molho de maracujá, acho mais bacana o sequinho, para dar um contraste maior. Aqui é difícil encontrar camarão, que preste, mas o daqui é divino.
- Obrigado, Dona Estefânia.
Fico dando passos lentos, esperando mais dicas mas da senhora atrás de mim, mas só ouço o tilintar de suas tantas pulseiras.
No último balcão, pego umas três fatias da mesma carne do senhor à frente, nem ouvi direito qual era. Ao garçom que me aborda após me sentar, peço um suco de laranja.
Com a mão esquerda, faço o suporte com a faca. Um pouco de arroz e batatas cozidas, minha boca saliva.
A batata se desmancha, suave e marcante. A faca desliza pela carne, o centro em tons de vermelho, o garfo a espreme um pouco. O suco está frio, quase nada doce.
Minha mãe fazia camarão, muito, quando o pai ainda morava com a gente, até as vizinhas iam comer lá em casa. O daqui é mesmo muito bom, crocante e macio.
Outra porção de arroz e ataco o salmão. O molho deixa uma mistura diferente, tão excelente, mastigo muito devagar.
Mais rápido do que gostaria, a comida acaba. Fico tentado a lamber o prato.
Me levanto e vou até o caixa. Enquanto um rapaz com pizza na camisa passa o cartão, abro a carteira e pego uma nota de vinte, talvez com o troco eu compre o bombom para a moça lá fora, a comida estava realmente muito boa.
- Boa tarde, senhor, R$ 57,26, por favor.
Eu encaro a atendente, olho para os lados, para trás, de novo para ela.
Abro a carteira e pesco uma nota de cinquenta, dois dias de hotel, e entrego de mal grado a ela.
A moça lá fora não parece mais tão bonita.
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Diante dos olhos
RomanceEssa é a história de dois irmãos e dois sonhos. Kauê tem um sonho de ser um astro do futebol. Fabiano tem um desejo mais difícil, sonha com um amor que se foi. Um mais que o outro, precisa mudar de ares para conseguir o que quer. Kauê se imagina...