Kauê

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Acordei com uma dor infeliz no pescoço, dormi sentado, encostado no vidro. 
O ônibus estava parado. "Só me falta essa carroça ter quebrado", desço só pra ter certeza da desgraça.
- O que foi com o ônibus?
- Ah, nada, o povo aí tá discutindo pra ver o que faz com o povo do outro ônibus.
- Que outro ônibus?
- Você precisa dar um jeito nesse seu pescoço, tá tortinho. Tem um outro ônibus da empresa quebrado aí pra frente.
Giro o corpo pra poder virar a cabeça e olhar pra frente. Mais adiante na estrada, um ônibus manco no acostamento. Vou até o montinho de gente.
- Seu Antônio, a gente não pode esperar pelo próximo ônibus, vai demorar umas nove horas até alguém chegar aqui.
- Olha aqui, seu Zé Ribamar, não tem como a gente levar essas pessoas mais as bagagens.
Ao que parece, eles estavam rodando em círculo nessa questão porque tinha uns que estavam com as veias do pescoço altas.
- Seu Antônio! Conseguiu falar com a firma?
- Menino, eles mandaram a Kombi pra cá, saíram de Porto Velho tem três horas. A Kombi vai tá carregada, devem chegar lá pra de tarde.
- Faz o seguinte, os passageiros e as bagagens de mão deles vem com a gente. Os dois ônibus estão a meio, deve caber todos num só. Os motoristas ficam com o ônibus e as bagagens maiores.
- E por que só os motoristas?
- Por que os motoristas não tem hora pra chegar seu monte de catarro.
- Esse menino aí tá louco se tá achando que vou deixar minhas coisas no meio da estrada!
- Então você fica com seu ônibus.
Eles olharam em volta. Só mato, um carro longe, bem longe, na estrada. Seu Antônio acorda.
- A gente sai em quinze minutos, quem quiser ir com a gente é como o rapaz disse.
Os passageiros correram e voltaram trazendo bolsas e mochilas com itens básicos, uns poucos ficaram no ônibus pra proteger seus bens. O zé roela ficou.
Conversando fiado tempos depois com um motorista da frota, descobri que a Kombi quebrou no meio do caminho e mandaram um carro pra socorrer a Kombi de Rio Branco. A viagem do outro ônibus bateu o recorde da empresa.
Famílias se separaram na troca de ônibus. "Mateus, fica olhando sua irmã Elizabete aí na frente, pai e mãe tão aqui no fundo".
- Você sabe se confirmaram se tem um bloqueio chegando em Mato Grosso?
- Estou sabendo de nada não, moço.
- Desculpe, Ricardo, pode me chamar de Ricardinho.
- Kauê.
- Muito bonito você, Kauê. Essas chuteiras aí saindo de sua mochila, vai jogar bola?
- É meu sonho.
- Bacana. Sabe, estou indo pra São Paulo porque minha família é muito retrógrada, eu tinha até uma namorada, para disfarçar. Ah, não precisa me olhar assim, Kauê, não vou te atacar.
- Tranquilo.
- Não estou vendo ninguém parecido com você, sua família é de lá? Aliás, desculpe a pergunta, você vai pra onde mesmo?
- Vou pra Goiânia, parece que vai ser mais fácil começar lá.
- Imagino que sim, sua família é de lá?
- Não, conheço ninguém lá não.
- Na cara e na coragem. E sua família, o que achou disso?
- Disse à mãe que ia ficar na casa de um primo de um conhecido lá do time. A mãe não ia deixar eu sair se soubesse que não tenho lugar certo lá.
- Ela está certíssima. Você diz que não tem lugar, não conhece ninguém mas pelo menos um dirigente, um contato você tem com algum time de lá, né, Kauê?
- Não, tenho não.
- Que loucura.
Ele fica calado, fica murmurando alguma coisa mas é muito baixo e não consigo ouvir. Espio de canto de olho, camisa social, jeans, sapato, estranho, tudo roupa de homem.
- O que acontece se eles estiverem fazendo o tal do bloqueio?
- Bloqueio? Ah, sim, ouvi falar que o ônibus muda a rota, passa pela Bolívia e depois volta, corta metade de Mato Grosso. Segundo me disseram, aumenta meio dia na viagem. Se tiver sorte.
- Estou cansado dessa viagem.
- Todos estamos. Vai lá, pergunta.
- Perguntar o quê?
- Se sou gay, porque minhas roupas é de homem e eu não tenho aparência de viado.
- Vou mentir não, estava pensando isso mesmo.
- Sabe, isso acontece por causa da família, eu acho, o pai ou a mãe tem uma mente muito retrógrada, tão fechada que seria melhor morrer do que ter a vergonha de ter um filho gay. Então, surge pessoas como eu, montam uma vida normal, com sonhos, namorada, roupas e uma conduta que é a esperada de um homem. Gera muita gente frustrada, mas o medo e a intolerância tomam conta.
- E você tem namorada, pra disfarçar?
- Juliana, não tenho certeza se ela sabe. 
- Só de você não gostar da fruta ela já deve imaginar, não?
- Eu cumpro meu papel, é como bater ponto, faz o serviço e vai embora. Às vezes é melhor ficar com as sobras do que chupando dedo.
- Você pensa isso?
- Eu não, mas a Juliana imagino que sim. E você, Kauê, tem namorada?
- Tenho uns rolo, mas nada muito sério. Não fico muito tempo, depois de umas duas semanas elas implicam com eu ir jogar bola.
- E você solta a peia delas.
Ricardo foi receber a parte dele na fazenda do pai, assinou os papéis e estava livre. Iria pra São Paulo e nunca mais veria ninguém da família. Disse que tinha conseguido um emprego muito bom em Mato Grosso, ia tentar voltar de tempos em tempos. Pelo o que ele disse, a mãe e os irmãos não ia sentir muita falta, estavam mais preocupados em como ganhar mais dinheiro depois da partilha.
O ônibus para, as pessoas saem arrastando os pés, murmurando e algumas babando.
- Ô, gente, espera um pouco aí.
A massa de zumbis se volta e espera.
- Seu Antônio, não vai descer por quê?
As pessoas acordam e olham com bastante atenção o motorista.
- Ah não, meu estomago não tá muito bom não.
- Você vai descer sozinho ou quer ajuda?
Alguem atrás de mim, rosna.
- Sabe, se a gente rodar mais umas meia hora meu estomago já vai estar melhor.
- A gente vai comer nesse restaurante que você escolheu, tiver alguma coisa errada, já sabe né.
- Vou na frente, pedir pra dar um desconto.
A comida estava uma porcaria mas ninguém reclamou do preço.
- Kauê, que cena foi aquela quando a gente estava descendo?
- Ontem, no café da manhã, a gente parou num lugar que era caro demais, fora de série, daí, a gente achou que os motoristas estavam ganhando um por fora. Ao que parece esse restaurante era assim também.
- Obrigado por não ter me deixado comer nada, Kauê.
- Vai dar caganeira em quem comeu daquela carne. Meu pai bem falava que não era bom comer em restaurante que não tivesse ninguém comendo. Bom, era o que falava antes dele sair na noite.
O banheiro tinha fila o resto da tarde inteira, o povo estava até verde. Nós passamos pelo bloqueio, Seu Antônio ficou possesso porque o pessoal do outro ônibus não tinha avisado do bloqueio, mas o pessoal da Policia Rodoviária não parou a gente. Ricardo pôs se a ler um livro atrás do outro e eu descambei a dormir. Estava nascendo outro dia, não lembro se era o terceiro ou o quarto, acordei com o ônibus parado em um sinaleiro.
- Ricardo, que cidade é essa? Tu sabe?
- Rio Verde, Kauê, nós devemos chegar na sua cidade em umas três horas.
Grudei a cara na janela e fiquei observando a paisagem, aqui já era outro patamar, mais avançado tudo.  Fiquei bem uns quarenta minutos observando a paisagem, mas não era lá tão diferente da minha terra. A cada vez que eu via chegando um punhado de casa, já pensava que era a cidade, mas era sempre um vilarejo ou cidade pequena. Até o ônibus sofreu numa subida e quando chegou no topo, pudemos ver bem mais pra frente, uma sombra cinza, maior que as outras.
- Àlágoiânia.
- Já tá chegando pai?
- Agora tá.
- Minha bunda já está doendo, pai.
- Aguenta só mais um pouquinho, bebê.
Goiânia, 5 Km.
Borracharia, oficina mecânica, retifica. Ponto de ônibus, caminhos de terra levando a casas sem reboco nas paredes. Uma escola, farmácia, posto de gasolina, distribuidora de bebidas. Um semáforo.
Dentro do ônibus, as pessoas vão despertando, pegando sacolas nas mochilas e recolhendo pacotes de bolacha, salgadinhos. Pessoas conversando na rua, a vida não parou enquanto estive na estrada para aquelas pessoas. 
- Você parece meio decepcionado, Kauê. Não era o que você esperava, não é?
- Eu não sei muito bem o que eu esperava.
- Sei como é. Kauê, você precisa ver mesmo é São Paulo, Rio de Janeiro, isso aqui é roça perto das duas. Se um dia cansar daqui, me manda uma mensagem avisando, que você fica lá em casa. Se bem que na verdade, o destino não importa. 
Eu olho para as lojas enquanto ele rabisca num pedaço de embalagem, me cutuca e entrega.
- Precisa se preocupar que ninguém vai te atacar.
Puxo a mochila e coloco no bolso da frente, junto com os documentos. O ônibus roda por mais uns vinte minutos, até que para.
Uma porção de gente se levanta, alguns pra descer e outros pra liberar o pessoal do canto. Minhas pernas não obedecem, o estômago afunda, consigo sentir meu coração batendo na cabeça.
- Menino Kauê?
- Ele já está indo! Ricardo responde por mim.
Dou um sorriso meio bosta pra ele.
- Vai lá, Kauê. Corre atrás do seu sonho.
Ele vira as pernas para dar espaço, seguro no encosto do banco à frente dele com força demais, escuto um "desculpa senhor" com a minha voz. Vejo Seu Antônio no final do corredor, está acenando para que eu ande logo, mas as passadas estão cada vez mais pesadas. Não sinto a respiração, não há cheiro ou som, só as batidas do coração. 
Tum-tum, tum-tum, tum-tum.
Quanto mais perto da entrada, da luz, mais gelado ficar o ar, minha barriga.
- Você está com fome, meu filho?
- Estomago tá meio ruim, só.
- Cuidado quando descer o último degrau.
Meu pé encosta na calçada encerada. Depois o outro pé e largo o corrimão da escada, largo aquilo para trás. O outro motorista está segurando minha mala, me ajuda a colocar ela nas minhas costas, e de repente, ela fica pesada, pesada demais. Agradeço e vejo a porta fechar após o último passageiro entrar. O ônibus dá ré e continuo parado. Vejo um rosto, a face de Ricardo, sair das janelas escuras de fumê.
- Ei, Kauê, vai na fé, porque é agora que sua história vai começar!

Diante dos olhosOnde histórias criam vida. Descubra agora