Capítulo dois

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Estou na sala de aula imaginando como os professores agem quando estão fora da escola.

— Abram o livro na página 262, façam os exercícios e me mostrem até o final da aula. Sem conversa — disse a professora de matemática com a sua típica cara rabugenta.

Observo a mulher fazendo suas anotações. Será que ela mora sozinha? Imagino como deve ser sua relação com a família. Como os pais reagiram quando a versão mais nova dessa mulher anunciou que seria professora? Talvez, ela não tenha pais. O que ela faz quando está triste? Filhos? Ela já amou alguém, de verdade? Ela também perdeu alguém?

A sala se enche com o barulho da turma abrindo os livros e dos alunos aproveitando o meio-tempo entre retirarem seus materiais das mochilas e efetivamente iniciarem suas responsabilidades, para conversarem. Adolescentes têm uma incrível necessidade de falar o tempo todo.

As vozes diminuem à medida que as pessoas avançam em suas atividades. O silêncio se instaura e a minha mochila continua fechada. Os professores têm consciência de que eu faço nada na escola desde a morte de Lucas. No início, a maioria deles se preocupou comigo, me incentivando a voltar a estudar. Mas, depois de três meses, a grande maioria simplesmente perdeu a paciência, e já sabia que de nada adiantava todo o incentivo. Eles achavam que eu já deveria estar melhor depois de "tanto tempo". Achavam que eu estava arranjando desculpas para não entregar minhas tarefas. Achavam que eu estava ficando louca. Eles achavam muita coisa, mas não sabiam de nada.

O sinal do intervalo toca, levando uma onda de adolescentes a correrem em direção à porta. Liberdade. Só restam eu e Laura, a minha melhor amiga, na sala.

— Parece até que eles nunca viram a luz do sol na vida — exclamou a menina de cabelos louros ao ver a euforia dos nossos colegas de turma para saírem da sala.
Eu me esforço e dou um sorriso. Laura com certeza foi uma das almas mais bonitas que eu já vi e um dos motivos de eu continuar a lutar. Foi a única pessoa que restou depois de tudo, porque aparentemente ninguém gosta de pessoas lidando com o luto. Laura tem duas covinhas que me fazem esquecer por um momento toda a minha angústia quando brotam no seu rosto cheio de sardas.

Deixamos nossa sala e andamos em direção ao pátio lotado. Desde a morte do meu irmão, eu e Laura tivemos várias conversas profundas. Com várias palavras bonitas, ela tentava me consertar.

Alguns dias depois da morte de Lucas, eu estava na escola, sentada no pátio depois da aula. Aqueles dias passaram em branco na minha cabeça. A morte faz isso com as pessoas: nos deixa desnorteados e confusos. Uma das únicas coisas que lembro é esse dia. Laura apareceu e se sentou do meu lado. Ela estava com um embrulho na mão.

— Comprei isso para você — ela me entrega o presente, embrulhado com papel verde.

Abro e vejo o que já imaginava: um livro. O que me surpreende é o título que aparece na capa: Como Superar O Luto E Seguir Em Frente.

— Espero que goste.

Olho para ela confusa. Nós duas odiávamos livros de autoajuda. Ela percebe a minha confusão e fala, enfim:

— Minha mãe me obrigou a te dar! Eu avisei que seria inútil mas ela disse que dentro do livro, havia o segredo da felicidade. Eu ia esconder, mas fiquei com a consciência pesada, desculpa. Podemos botar fogo, se você quiser.

Foi uma das únicas vezes que ri depois do funeral.

Na maior parte do tempo, nós simplesmente ficávamos em silêncio, aproveitando a companhia uma da outra. Nós nunca gostamos da ausência de palavras, tagarelávamos sobre tudo e todos. Agora eu entendia que havia coisas que apenas o silêncio era capaz de nos dizer.

Eu observo distraída o céu sem nuvens daquele dia, quando um menino se posta na minha frente.

— Oi Laura! Ah, oi Clara. — Falou o menino fraquejando a voz ao me cumprimentar. Essa é a reação da maioria das pessoas ao me encontrar: desconforto.

— Oi Vitor. Tudo bem? — Respondeu Laura, enquanto eu fico calada.

— Tudo ótimo. Bem, eu queria te chamar para a festa que vai ter na minha casa esse sábado. Meus pais vão viajar, então teremos a casa toda para nós. E Clara, você pode vir também, se quiser.

— Que bacana! Nós vamos sim, até mais — ela se despede do garoto. Espero até que ele estar longe o suficiente para repreendê-la.

— Você disse "nós"? Eu não vou à festas, você sabe.

— Clara, vai ser legal! Vamos, é só uma festa, eu sei que você consegue isso.

— Eu não sei...

— Clara, me escuta. Você sabe o quanto eu te amo. Eu sei por tudo que você passou. E eu quero muito que você consiga sair dessa fossa. Essa festa pode ser um recomeço. Seu irmão iria querer isso — disse com uma expressão séria.

Encaro a cara de preocupação de Laura. Meu coração está acelerado. É só uma festa. Eu vou sobreviver. Eu preciso tentar. Nem que eu só agisse normalmente durante cinco minutos e passasse o resto da festa trancada no banheiro.

Laura continua a me observar, agora com uma expressão de dúvida, talvez achando que tinha me forçado demais aceitando o convite. Eu respirei fundo.

— Eu vou dar uma passada lá — e então as covinhas que eu tanto gosto aparecem, e pela primeira vez, depois de um longo tempo, eu sorrio de verdade. Era como renascer. Era como acordar de um pesadelo terrível. Porém, os pequenos segundos de felicidade são derrubados pelo sentimento de culpa. A maldita culpa. Estava sempre presente. Ela se apossou de mim e não queria mais sair.

Laura percebe que meu sorriso foi substituído pela minha cara séria de sempre.

— Você não precisa ir se não quiser.

— Eu quero ir. Eu irei.

Falar aquilo me mata por dentro. Mas ter visto Laura feliz ao me ver considerar a ideia de finalmente voltar para a minha antiga vida, fez com que eu concordasse. Além do mais, eu já havia lidado com uma morte bem pior.

O resto da manhã se segue como todas a outras. Imagino quando o professor de química beijou pela primeira vez. Como a diretora se saiu em sua primeira entrevista de emprego. Qual o filme favorito do zelador. São coisas que gosto de pensar. É algo que meu irmão me ensinou. Somos todos pequenos universos.

Na volta para casa, sob o sol quente do começo de tarde, também penso em como alguns meses atrás eu não pensaria duas vezes em ir para a festa. E também, que Lucas provavelmente me daria uma carona até o lugar, e me traria de volta em segurança para casa.

No meio do caosOnde histórias criam vida. Descubra agora