Capítulo três

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Estou vestida com meu vestido predileto e delicadas sandálias de tiras. Termino de aplicar rímel nos meus pequenos cílios e pego minha bolsa. Encaro-me no espelho. Ao ver minha imagem, imagino que se um estranho cruzasse comigo na rua, eu aparentaria ser apenas mais uma adolescente normal indo para uma festa.

Eu pareço comigo antes da briga. Pareço com a versão de mim que ouvia Panic! At The Disco e gostava de fazer testes do Buzzfeed.

As coisas pareciam estar voltando aos eixos. Finalmente. Eu precisava de um tempo de mim mesma. Eu costumava ficar completamente fora de mim em festas. Talvez eu conseguisse me distrair.

A luz do corredor entra no meu quarto pela fresta da porta. Enquanto dou os toques finais na minha aparência, percebo que a quantidade de luz que entra no meu quarto aumenta, porque alguém está espiando o que eu faço. Ao olhar atentamente a brecha da porta, noto um par de olhos brilhosos. Minha mãe.

Quando contei à ela sobre o convite para a festa do Vitor, a emoção que ela sentiu foi a mesma da primeira vez que eu fui à escola ou a primeira vez que eu dormi na casa de uma amiga. Uma felicidade misturada de medo e insegurança. Finalmente, ela iria me soltar para o mundo. Não era a primeira festa que eu ia, mas era como se fosse. Tivemos várias primeiras vezes depois da morte de Lucas, e essa era, de longe, a mais importante delas.

Abro a porta do cômodo e a figura da minha mãe aparece à soleira da porta. A mulher tentou disfarçar o fato de estar me observando, o que me fez rir. Aproximo-me dela e dou uma volta ao redor de mim mesma, mostrando como estava vestida. Seu sorriso se alarga ao ver como eu realmente estou me esforçando para me reerguer, mesmo restando apenas as ruínas da pessoa que um dia eu fui, e exclama:

  — Você está estonteante filha! A Laura já está lá embaixo, te esperando para te levar.

  — Obrigada, mãe...

Então seus braços se envolvem na minha cintura e ela me dá um abraço apertado. Eu sinto que ela está muito feliz por mim. Mas, ao mesmo tempo, não quer me largar. Ela estava com medo de me deixar ir, mas sabia que era necessário, tanto para mim quanto para ela. Eu não a culpo por isso, depois de tudo que aconteceu, e, sinceramente, eu também estava apavorada.

Me desvencilho dos seus braços e o rosto cansado da minha mãe exibe um sorriso. Mas, seus olhos estão tristes. O olhar melancólico então se enche de lágrimas, e com a voz embargada, ela fala:

  — Quem diria que um dia você hesitaria antes de ir para uma festa... — ela comprimiu os lábios, claramente segurando o choro. Olhei para o chão, sem saber o que fazer. Tivemos poucas conversas sobre o pior episódio de nossas vidas. Ela era incapaz de falar um palavra sobre o filho sem começar a soluçar. Minha mãe estava mais destruída do que eu ( afinal, era o seu filho )  por mais que tentasse mostrar que estava tudo bem. 

— Vai ficar tudo bem, mãe. Eu prometo.

Passo meu braço pelos seus ombros e descemos as escadas juntas. Sigo o caminho até a porta de casa em silêncio. Estava quase saindo, quando minha mãe me para.

  — Você, provavelmente, vai chegar tarde, então vou te falar uma coisa. Você não vai gostar. — O jeito que ela fala faz meu coração acelerar. Ela respira fundo.

— Seu pai estará na cidade amanhã. Ele quer ver você. Ele vem amanhã de manhã te buscar para passarem o dia juntos , ele disse que queria te levar para comer sushi no fim do dia — eu fecho os olhos e coloco a mão na cabeça. Merda. Meu pai é a última pessoa que eu gostaria de ver.

Logo agora, que as nuvens que estavam ao redor da minha cabeça estavam começando a se dispersar, e eu conseguia enxergar alguns feixes de luz no meu céu nublado. Agora as nuvens pareciam mais pretas e densas. Ele causava um furacão na minha mente que estava se recuperando de uma tempestade. Além do mais, qualquer um que já trocou meia dúzia de palavras comigo sabe que eu odeio sushi.

  — Está bem, eu estarei pronta amanhã de manhã —  disse aquilo tentando engolir a minha raiva. Aquele homem não teve a decência nem de aparecer no funeral do Lucas. Ele era uma das pessoas que mais me fazia mal, simplesmente por ter que aturar a presença dele.

Meus pais se conheceram na época da faculdade e se apaixonaram desesperadamente. Minha mãe era uma jovem de 18 anos, decidida sobre a sua vida, enquanto meu pai era um rapaz de 20 anos que não tinha certeza de que tinha escolhido o curso certo. Minha estudava e trabalhava na lanchonete da faculdade. Ela queria conhecer o mundo. Porém, quando meu pai se sentou no balcão da lanchonete onde ela trabalhava pela primeira vez, ele virou o mundo dela.

Eles eram completamente diferentes um do outro, mas isso não fazia a menor diferença. Ficavam o tempo todo declarando que se amavam infinitamente e que foram feitos um para o outro. Eles deram certo, até minha mãe engravidar. Ela queria ter a criança, mas meu pai queria que ela fizesse um aborto. Quando ela recusou a abortar, e meu pai reagiu de maneira completamente abusiva.

Ele batia nela. Ele batia numa mulher grávida. Quando ficou grávida de mim, o repertório se repetiu. Até que minha mãe não aguentou mais, e fugiu com Lucas e comigo na barriga para outra cidade. Quando eu nasci, ele veio implorar por perdão, dizendo que seria um pai melhor, mas minha mãe não aceitou. Ela já estava cansada daquilo tudo. Eles se divorciaram, e desde então ele via eu e Lucas quando estava na cidade e só me ligava no Natal e no meu aniversário.

Eu o odiava por ter feito minha mãe passar por tudo aquilo. O relacionamento dos dois me fez acabar com a ideia de que existia uma alma gêmea para cada pessoa na Terra, e que essa história de amor verdadeiro era uma completa invenção.

  — Clara, a gente vai se atrasar! — Sou retirada dos meus devaneios pelo grito de Laura, seguido de uma buzina. Termino de me despedir da minha mãe e sigo para o carro. Abro a porta e sento no banco do carona.

  — Hoje será uma noite inédita. Vamos inserir uma inocente menina na vida social. Pela segunda vez. — Rio do seu comentário, enquanto ela segue em direção à casa de Vitor. Ela parecia uma apresentadora de um programa de auditório apresentando um daqueles quadros que realizam os sonhos das pessoas. Chega a ser engraçado. Imagino uma platéia inteira me observando.

Mesmo com o bom humor de Laura e seu dom de me fazer bem, é inevitável sentir um peso no coração pelo que sucedeu a minha entrada naquele carro.

O céu está sem nuvens e a Lua parece imponente no céu. É uma Lua minguante. Eu a observava, e percebi como parecia com ela. Por mais que estivesse inteira, uma parte de mim estava faltando. Eu me sentia sozinha, mesmo tendo tanta coisa ao meu redor. Ela estava no meio do céu. Eu estava no meio do caos.

No meio do caosOnde histórias criam vida. Descubra agora