Clara e David

222 40 3
                                    

QUANDO PERCEBEU O QUE DEVIA TER acontecido, Clara entrou em pânico. Agarrou o celular e se vestiu as pressas. Correu até o ponto de ônibus e pegou a primeira lotação que passaria na casa de seu melhor amigo.

Aquilo não estava acontecendo. Não podia estar. Ele era forte, ele sempre foi forte. Sempre lutou contra aquilo. Sempre fora mais forte do que ela.

Durante todo caminho, Clara fez um futuro feliz em sua cabeça. Ela chegaria no pequeno apartamento, e David mostraria seu sorriso amarelo de sempre. Abriria os braços e a convidaria para assistir Game Of Thrones em seu novo televisor. Diria que tinha sido forte, que tinha controlado a si mesmo, e que ia passar o dia com ela para provar.

A mãe dele chegaria minutos depois com uma tigela de pães de queijo, com o avental sujo de farinha e o cabelo preso num coque. Eles conversariam sobre onde iriam da próxima vez que visitassem o centro da cidade, e Clara contaria novamente sobre mais uma de suas desilusões amorosas.

Ela sabia que aquilo era impossível. A mãe dele havia morrido dois anos antes, e foi ali que a depressão dele começou.

Fora bem difícil no começo. Aliás, não só no começo, como no meio e também no que ela pensou que fosse o fim. "Depressão é uma coisa séria", disse o diretor da escola certa vez, "É uma doença tratável. Com a ajuda de médicos e familiares, tudo pode se resolver". Eles tinham só doze anos na época, e nem sequer pensaram muito no assunto depois que a palestra no auditório do colégio acabou.

E ali estava Clara, seis anos depois, a mão apertando fortemente o banco do ônibus, e forçando a si mesma a segurar as lágrimas. Ali estava ela, pensando no pior, não acreditando que David seria capaz de fazer aquilo.

Capaz de ir embora.

Clara se lembrava de quando ele tentou pela primeira vez. Ela tinha dezesseis e ele dezessete, e como a aula fora cancelada por conta de uma greve, ela resolveu ir até a casa de David, sabendo que o padrasto do menino não estaria lá.

E realmente não estava. Quando ela entrou na pequena casa, o malvado padrasto de David não estava lá. Mas sim o próprio David, caído no chão do banheiro, segurando um pote de remédios que em hipótese alguma deveriam estar ali.

Clara sentiu as lágrimas ardendo em seus olhos, e ela se forçou a segura-las novamente. Seja forte.

A morena levou o amigo correndo no hospital; na verdade, o mais rápido que o sistema de saúde público conseguia ir. Dois dias depois ele acordou, sem dizer nenhuma palavra.

Também, não precisava. Seus olhos âmbar diziam tudo quando encontravam os da garota, numa mescla de confusão e arrependimento.

Desde então, David tinha ido ao conselho tutelar. Para uma psicóloga. Um psiquiatra. A barraca de pão de queijo que sua mãe era dona. Segundo ele, estava tudo bem. David tinha melhorado.

Ele não deixaria Clara. Estava tudo bem. Ele tinha sido forte.

O ônibus parou bem em frente ao novo prédio onde David morava, e ela praticamente voou pra fora dele.

Mesmo ela querendo que fosse mentira, mesmo ela querendo que ele estivesse bem, uma voizinha em sua cabeça martelava "ele já não era mais tão forte".

O barulho dos carros abafou o grito de Clara quando ela se jogou ao lado do corpo dele. O celular caro caiu no chão, e a tela rachou em cima da última mensagem de David.

"Eu te amo. Adeus"

As lágrimas saíram  livremente e mancharam seu rosto com a maquiagem borrada. Tudo que ela queria dizer era que também o amava.

Ser forte é difícil. Confiem em mim; nem sempre o ser humano consegue. As vezes, nós simplesmente não aguentamos mais.

David não aguentou mais.

Nem Clara.

Dois meses depois, o corpo estatelado no chão, era o dela.

Conto escrito por deumons

Ainda há esperança para as floresOnde histórias criam vida. Descubra agora