As paredes brancas do quarto já não o irritavam havia meses, ao contrário, acalentavam seus pensamentos outrora imparáveis. Certa vez ele colocara gravuras, pessoas desenhadas precariamente, rostos que, se houvesse algum talento por parte do desenhista, lhe eram familiares. Mas não lhe fez bem, todas as noites eram repletas de pesadelos, não, não eram sonhos, eram lembranças... "vivemos apenas para construir memorias", sussurrava-lhe uma voz suave, não acalmava, "não volte mais aqui", "como você pode fazer isso comigo?", "fica, por favor", "são vinte horas", "não", "volta aqui", "mentiroso", "eu era seu amigo", "desculpa", "algum dia você vai me perdoar?". Os desenhos foram substituídos por estas sentenças, penas, castigos, frases vazias cheias de sentimentos, todas em volta de uma única palavra na parede oposta à cama: DESCULPAS.
Agora não havia mais nada, apenas o branco, sem vida, sem sina, sem nada, sem significado algum além do branco. Branco é apenas branco, assim como o preto, opostos que na verdade são a mesma coisa, são nada, são vazios apenas esperando para serem preenchidos por seja lá o que for. Nada. Ou tudo.
Não tinha pertences além das roupas que lhe restaram, um jeans rasgado, um tênis sujo, uma camiseta azul, as outras ele deu para os outros. Os outros. Sentira saudades? Provável, afinal foram cinco anos. Cinco? Ou seriam seis? Cinco anos foi tempo suficiente para o pequeno jardim ficar tão grande? Tempo suficiente para ler todos aqueles livros ou escrever o seu? Quem leria? ELE leria? ELE sempre leu.
Antes de ir tinha alguém com quem precisava falar, se despedir, aquele que foi seu amigo durante todo o tempo ali, com quem dividiu suas tardes embaixo do velho salgueiro, deitado por horas, escrevendo, e as noites de tempestade, juntos na cama. O velho senhor Pelos.
O gato era um maine coon de quase dez anos, com sua longa pelagem amarelada quase esbranquiçada com a idade, era arisco com todos, mas um dia resolveu deitar ao lado dele debaixo do velho salgueiro e voltou nos dias seguintes.
Sr. Pelos estava, como sempre, deitado na varanda, olhando para o nada, como que admirando o vento dançando, depois do almoço era lá que ele estaria e por volta das quinze horas iria deitar debaixo da velha arvore junto de seu amigo. Não dessa vez. O gato sabia, todos tinham certeza, ele sabia. Quando chegou perto e se sentou no parapeito ao seu lado, o animal imediatamente se jogou no seu colo e se acomodou, ronronando alegremente, saudosamente, seu adeus acalorado.
- Não posso te levar, Sr. Pelos.
Foi tudo. O gato saiu e nem sequer olhou para trás.
Ele ficou sentado ali. Olhando para o gramado. Não sabia o que sentia, apenas sentia. Estava indo embora depois de tanto tempo. Foi forçado a ir para lá, mas no fim das contas gostou. Clichê, mas verdade.
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Os Contos de São Miguel - volume 1 Karma
Mystery / ThrillerSão Miguel é apenas mais uma cidade, porte médio, uma boa universidade pública, pessoas boas e pessoas ruins... São Miguel também é uma cidade reservada, por trás de todo o cotidiano e calmaria se escondem histórias que fariam até mesmo o mais otimi...