Capítulo 11

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Ele sabia o que esperar quando abrisse os olhos, um quarto de hospital vazio, talvez houvesse uma enfermeira, talvez estivesse algemado, mas não sentida nenhum desconforto na mão além do acesso venoso.

Quando abriu os olhos o que viu não era exatamente o que esperava, o quarto estava lá, mas não vazio, havia uma garota loira jogada num sofá bege, dormindo, quase babando, não o sofá fosse confortável, mas ela estava cansada.

Cansada de esperar por ele, cansada de odiar ele, cansada de amar ele, cansada de ficar sem noticias, cansada de ser ela. A VITIMA, como todos a chamavam.

Ali estava Elizabeth Ventura, Lizzie. Primeira e única namorada Dele, desde o ensino médio, estudante de jornalismo, escritora e administradora em um blog. Sonhadora.

Anos atrás eles eram quase noivos, pensavam na cerimonia, na lua de mel, em ter um filho, em sair de São Miguel, ir morar no litoral, talvez...

Hoje ali está ela, deitada num sofá desconfortável de hospital, esperando que o homem que lhe jurou amor, o mesmo que era responsável pela sua infertilidade e o mesmo a quem ela não conseguia odiar, acordasse de mais um surto.

O que ele fizera dessa vez?

Será que mais alguém estava em coma? Será que mais alguém não poderia ter filhos? Será que mais alguém perdeu um membro? Será que tem uma dezena de jornalistas esperando por ele?

O plano mais uma vez saiu do controle. Assim que ela acordasse iriam ter que conversar.

Alguém estava na porta, uma mulher, ele sabia quem era e não teve surpresa alguma ao ver a Dra. Almeida adentrar ao quarto, mas ela trazia algo que lhe surpreendeu.

- Sr. Pêlos! – exclamou ele em alegria, o gato pulou do colo da medica e subiu no leito se acomodando ao lado o paciente, ronronando não em alegria de vê-lo, mas por ter um lugar confortável para dormir e ser acariciado.

- você devia ter me ligado quando as coisas saíram do controle.

- eu liguei.

- não ligou não.

- sim, liguei, conversamos sobre o assassino.

Ela o encarou. Seria. Ele sabia o que viria a seguir.

- tomou todos os seus remédios?

- sim.

- usou drogas?

Ele não respondeu.

- você comprou um celular?

- sim, está na minha...

Ele parou no meio da frase, reconheceu o que estava acontecendo.

- estou surtando de novo?

- você iniciou um processo esquizofrênico novamente. A cocaína deve ter acelerado.

- o assassino...

- você não sabe quem ele é. Ninguém sabe.

- eu sei.

- segundo você o assassino é...

Lizzie acordou.

- vocês precisam conversar. Você deve sair hoje ainda, não foi tão grave, mas vamos conversar antes de lhe dar alta.

Ela saiu do quarto. Os dois que ficaram se encararam enquanto o gato ronronava.

- oi. – disse ela com um meio sorriso.

- oi.

- quanto tempo...

- seis anos.

- é, faz um tempinho.

"como ela é linda"

- por que você veio?

- não lembra, não é?

- só lembra de expulsar o Marcus.

- seus braços ainda doem?

- meus braços?

Ele não percebera que os braços estavam enfaixados.

- o que aconteceu?

- depois que Marcus saiu ele foi até minha casa, me contou sobre a conversa de vocês... Mi...

- não diga meu nome.

- por que não?

- não mereço ter o nome de um arcanjo.

- Miguel.

Ela disse em desafio.

A pronuncia de seu nome por alguém de seu passado quebrou algo dentro dele. São Miguel Arcanjo. O Guerreiro de Deus. Remetia às raízes religiosas de sua família. Agora ele lembrava.

- eu não te culpo – ela bocejou – desculpa, não durmo direito desde que você deu entrada...

- quanto tempo?

- três dias hoje.

- puta merda. O que aconteceu?

- então, depois que o Marcus me contou que você ainda se sentia culpado eu fui até seu hotel, bati, mas ninguém atendeu, já estava voltando pra casa quando te encontrei na praça dos Pardais.

- eu fui até sua casa?

- e ficou sentado na praça, enquanto fazia cortes nos braços.

A praça dos Pardais fica em frente à casa de Lizzie, foi lá que eles deram o primeiro beijo, debaixo do enorme cedro que serve de ninho para inúmeros pássaros, o que deu nome ao local. É um lugar escuro e cheio de arbustos, ele ficou sentado sem ser notado, pouco movimento durante a noite.

- alguns bem profundos. Miguel, me diz, por que você me afastou? – ela parecia ao ponto de chorar.

- eu roubei um carro, sequestrei você, levei até a casa que minha irmã foi assassinada e coloquei uma faca em seu pescoço.

- você estava tendo um surto psicótico depois que assassino foi preso.

- eu fiz mal à única pessoa que ousou me amar.

- eu sei que...

- que eu não queria fazer isso? Que foi uma casualidade? Já considerou que esse lado sempre esteve dentro de mim?

- você não é assim.

- puta que pariu, Lizzie, você quase morreu quando joguei aquele carro contra o muro enquanto eu saí com alguns cortes. A porcaria de uma ferragem atravessou seu útero. EU TIREI SEU SONHO DE SER MÃE.

Ela não respondeu.

- era ele. Eles pegaram o cara certo.

- como?

- o homem que você dizia não ser o verdadeiro assassino. Ele confessou e entregou os troféus pra polícia.

- não. Não pode.

- quanto ao fato de ser mãe. – ela colocou a mão na barriga. – não há nada nesse mundo que me faria mais feliz, mas infelizmente não posso mais gerar um filho. Não posso mais casar com o homem que um dia amei tanto, porque ele se considera um louco e depois de tanto tempo não se perdoa, mesmo todos nós tendo-o perdoado. Não vou insistir mais. Você quer morrer? Ok. - ela se levantou, primeiro ficou parada, depois ameaçou ir embora, mas foi na direção contraria e o abraçou.

Ele começou a chorar.

- por favor, me perdoa.

- já te perdoei anos atrás.

Ele assistiu ela ir embora, a porta fechar devagar, ela esperava ele chamá-la, dele deveria tê-la chamado, mas não podia, não devia.

Os Contos de São Miguel - volume 1 KarmaOnde histórias criam vida. Descubra agora