Capítulo 7

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Ele ouvia claramente os acordes repetidos da música no velho toca fitas, a voz rouca de Johnny Cash e a letra dramática ecoando pelo quarto junto com os gemidos, "It's all over, it's all, over my heart echoes...", depois as luzes em alta velocidade passando pela janela do carro e a parede vindo em sua direção.

Lagrimas.

Desculpas.

Havia anos que ele não sonhara com aquela noite, havia deixado dela lado muita coisa e os acontecimentos daquela quarta-feira, dia 20 de outubro era uma delas. Mas toda a noite foi a repetição daqueles momentos. A raiva, a frustração e a cocaína foram grandes estimuladores do sono perturbado. Por sorte não trabalharia até a segunda-feira.

O sol batera em seu rosto e o despertou parcialmente, por um segundo, ao abrir os olhos ele pensou ter visto alguém ao pé da cama. Uma moça loira com olheiras profundas, mas mesmo com cara de choro misturada com a insônia ela continuava linda.

- Liz... – ele sussurrou – Lizzie...

Mas não era, não seria ela nunca mais. E por isso ele era grato.

O dia foi improdutivo, eram 11h00 quando despertou totalmente, desceu ao meio dia para almoçar e descobriu que a comida servida no hotel era boa, por incrível que pareça, ou talvez ele apenas melhor que a do hospital, ou diferente.

Dona Carmelita não tirava os olhos de cima dele, como se soubesse da cocaína no apartamento, o que era bem provável, afinal ela estava acordada e o viu entrar às pressas, com aquele olhar vidrado e viciado que tantas vezes ela vira nos rostos de seus hospedes.

Era quase 14h00 quando ele saiu, dessa vez o plano tinha que dar certo, precisava encontrar alguém, precisava tentar encontrar alguém. O endereço era antigo, de antes do acontecimento, mas era o único.

Avenida Fidelis Moura, número 252, Vila Lagoa das Olivas.

A avenida não era longa, não era muito movimentada, aquele bairro não tinha nada demais, o maior atrativo era uma lanchonete que seguia o modelo dos anos 80' com garçonetes usando patins e uma máquina de música, por sinal não era movimentada também, mas continuava aberta apesar de todas as dificuldades financeiras, desde que eles eram crianças.

Certa vez foram pegos pelos pais matando aula ali, mais de uma vez é verdade, até que o gerente proibiu que eles entrassem em horário escolar. Mas isso não os impediu de matar aula.

A casa 252 ficava a algumas quadras da lanchonete e ele poderia ver se alguém saísse de lá. O Sr. Matias havia morrido nove anos atrás, ele não voltara ali desde então, mas velha maquina estava lá, apenas esperado para tocar Led Zeppelin.

Não demorou muito para um homem sair da casa, sozinho, mancando e com cara de poucos amigos, devia ter recebido a carta, estava se dirigindo para lanchonete. Ele ficou nervoso. Aquele era o primeiro passo para reconstruir sua vida. Independentemente do que acontecesse ali, ele jurou, iria continuar.

Tocava Black Dog quanto a sineta sobre a porta, sim havia uma sineta, tocou indicando que o homem chegara enfim, mancou até a mesa e se sentou, não disse nada, ficaram apenas se encarando, depois de muito tempo, nenhum dos dois sabe ao certo quanto, Ele disse:

- não sabia se ainda morava aqui, Rick.

- por que sairia?

- lembranças.

- não sou eu quem é atormentado pelo passado.

- de fato, não é.

- então, o que quer?

- esses anos todos lá, no hospital, tinha uma palavra que não saia da minha cabeça. Eu sei que não vai mudar nada, não vai trazer o Lucian de volta, não vai consertar o estrago que fiz na vida da Lizzie e muito menos te devolver sua perna, mas só quero que saiba que eu sinto...

- cala a boca, por favor. Você ficou trancado seis anos, seis malditos anos, ignorando tudo e todos de fora, não respondia cartas, ligações, quando sai do hospital eu fui te visitar, mas você sabe disso, afinal se recusou a me receber. A Lizzie, ela perguntava por você. Você desgraçou a vida dela e ela perguntava por você. Marcus queria por seu nome no filho, mas a Mirian disse não.

"Ela é a única pessoa sensata entre nós. Eu sou um aleijado por sua culpa, ouviu bem? Sua culpa. Todos eles dizem que foi um acontecimento fatídico, mas isso não tira sua culpa, nem um pouco. Eu sei que você se culpa e vou lhe dizer, está certo quanto a isso. Marcus me contou sobre ontem, ele falou para a Lizzie que você estava lá, ela me ligou de madrugada, chorando, sabe por que? Porque depois de tudo isso ela não consegue te odiar. EU não consigo te odiar, eu perdi um pé, ela perdeu um irmão e você só perdeu alguns anos. ISSO PARECE JUSTO?"

Ricardo estava ofegante, Ele não disse nada.

- eu quero que você saia daqui e não me procure. Faça um bem e não procure a Lizzie, ela não merece. Você sabe que vai estragar ainda mais a vida dela. Adeus.

E foi embora, mas antes que pudesse sair Ele disse:

- você pode dizer meu nome?

- o que?

- meu nome, você pode dizer?

- ta de brincadeira?

Eles trocaram um último olhar, a sineta tocou e Ricardo partiu.

Os Contos de São Miguel - volume 1 KarmaOnde histórias criam vida. Descubra agora