Capítulo 1

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O caminhar vinha displicente. Quase arrastado. Sem pressa de concluir seu trajeto ou mesmo de retornar ao ponto de partida. O desejo naquele momento era de deixar-se levar.

A mulher dona daqueles passos, sobre um tênis velho e surrado, gostava de contemplar aqueles corredores largos, cobertos por molduras onde guardavam informações, cartazes, listas, fotos de formandos, homenageados e até mesmo algumas obras de arte.

A construção que continha aquele corredor era muito velha, afinal, estava dentro de umas das mais antigas universidades daquele país europeu. Inglaterra, essa era a sua morada. E aquele lugar a fascinava. Por isso, na hora do seu descanso entre um turno e outro de trabalho, gostava de passear por esses corredores de pedras escuras.

Hoje não seria diferente, porém, tinha um significado mais atraente. Nas quartas-feiras, na maior sala, as aulas de literatura inglesa eram ministradas – sua favorita – e dessa forma, aumentou seus passos quando a voz do professor começou a sobressair, e então, pode identificar a obra que seria analisada por aqueles alunos entediados.

"Todos os nossos talentos aumentam com o uso, e todas as aptidões, tanto para o bem quanto para o mal, se fortalecem pelo exercício..."

Entrou sorrateira naquela sala de aula que mais parecia um anfiteatro. Sentou em uma das últimas carteiras, próxima a sua saída, de onde conseguia ter a visão completa daquele ambiente imenso, porém, preenchido apenas pela metade.

A maioria daqueles alunos se concentravam na parte de baixo, próximos ao professor que não precisava declamar muito alto as citações do livro que estava em suas mãos – algo que era sem sentido, apenas mantinha ali como segurança, conhecia de cor aquelas palavras que emitia.

"... portanto, se você escolher usar o mal, ou aqueles que se inclinam ao mal..."

O restante dessa turma estava espalhado pelo anfiteatro mexendo em seus celulares ou tendo conversas paralelas sobre qualquer assunto, exceto o que seria discutido sobre o tema proposto.

A mulher torceu o nariz para esses jovens que não estavam sabendo aproveitar aquela oportunidade única. Ela teria dado qualquer coisa para poder ser aluna daquela universidade, e principalmente, daquele professor em particular.

Fazia três anos que estava inserida naquele ambiente e vinha de tempos em tempos, sempre que seus horários de folgas permitiam, ser uma ouvinte daquela disciplina. E já no primeiro contato com aquele professor em questão ficara enfeitiçada.

Não era a primeira vez que escutava aquelas palavras saírem daqueles lábios finos e delicados. Foi justamente por escutá-las que voltou a sua atenção quase que exclusiva a ele. Aquele era um dos trechos de sua autora favorita. E pelo que pode observar durante todo esse tempo, também era a do professor.

Não que ele não fosse eloquente com outros autores clássicos de sua literatura, mas aquela autora era de certa forma especial. Talvez por ter sido a menos famosa de suas irmãs, ele sentia certa identificação ali. Sendo assim, sempre havia mais emoção quando chegava o momento de declamar aquele trecho selecionado a dedo.

"... até que eles se tornem seus mestres, e negligenciar os bons até que eles desapareçam, só poderá culpar a si mesmo."

As últimas palavras foram ditas de olhos fechados. Olhos pequenos que guardavam um castanho quase amarelado. Os braços voltaram a se alinhar com o seu tronco e ele retornou para próximo de sua mesa, depositando o livro de suas mãos ao lado de sua caneca de café vazia, resgatando seus óculos de grau e o colocando de volta em seu rosto anguloso. O que reforça a ideia de que aquele livro em sua mão durante a explanação era um exagero.

— Alguém saberia me dizer de qual autora e obra esse trecho pertence?

A voz dele voltou ao seu tom normal, quase inaudível para aqueles que sentavam nas últimas fileiras. Porém, ainda havia resquícios de emoção que logo esvairiam como névoa. Talvez se a sua ouvinte tivesse dito em voz alta que se tratava da obra: A Inquilina de Wildfell Hall de Anne Brontë, ele sentisse ainda uma ponta de esperança naqueles jovens a sua frente.

O que não aconteceu. Apenas depois de mencionar que a autora fora irmã de outras duas famosas é que um dos seus alunos chegaria àquela conclusão que a ouvinte chegou há três anos, quando justamente aquele trecho, a levou até aquela sala e teve sua primeira aula ministrada pelo professor de literatura inglesa Stephen Weber.

Um homem no auge dos seus quarenta e cinco anos. Elegante e discreto. Gosta de cores neutras tendendo para o escuro. Hoje usava um terno azul-marinho. Os cabelos sempre muito bem aparados e penteados em um tom de castanho pouco mais escuro que os seus olhos. Andava insatisfeito com ele nesses últimos anos. Sentia que estavam ficando ralos e temia ficar careca como o seu avô.

O fato é que professor Weber – como é conhecido dentro daqueles prédios antigos – é um homem muito vaidoso. E ver a ação do tempo sobre o seu corpo, mais precisamente sobre o seu rosto, o estava incomodando. O que ele ignorava é que justamente essa acentuação em suas linhas de expressões estava o deixando a cada dia mais interessante.

Ela sorriu, achando graça quando viu na expressão dele desânimo. Olhou para o relógio no seu pulso, constatando que já estava na hora de retornar ao seu posto atrás do balcão da maior cafeteria aos arredores daquela universidade.

Saiu como entrou. Sem ser notada. Estava acostumada com isso. Nem mesmo atrás do balcão entregando os pedidos daqueles alunos distraídos ou para os professores ocupados, a sua presença era sentida.

Prestadores de serviço estão lá como parte do ambiente. Até um vaso de flor é mais apreciado do que esses seres humanos, que são selecionados para fazer com que o fluxo siga seu curso normal e não atrapalhem a vidas das pessoas que se servem deles.

Olhar, saudar, sorrir. Ou seja, integrar não faz parte do processo. São pessoas invisíveis, e como tal, acabam de certa forma se acostumando com aquilo. Sendo assim, a mulher caminhou pelo mesmo corredor largo de encontro à luz do dia na outra ponta. Seguiu o tempo todo com aquela voz ecoando em sua mente. Imitando aquela dicção suave e firme do professor, repetindo tudo o que havia escutado.

Agora a realidade voltava como uma baforada quente dos verões de sua terra natal em seu rosto, quando colocou o seu avental e disse:

— Bom dia! O que deseja?

E assim, seguiria o resto do seu dia. Invisível. 




O Professor [Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora