Era para ser mais um dia normal na rotina de Manoela de Alencar. Brasileira, filha de um português com uma carioca e que há muito tempo trocou a terra do carnaval e partiu em busca de outras culturas.
Facilidade adquirida pelo pedido de cidadania portuguesa herdada. Estava vagando pela Europa já fazia uns dez anos e não tinha dentro dela a menor vontade de retornar a sua terra natal.
Não que não gostasse daquele país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, como sugere a música cantada por Jorge Ben Jor. Sentia muito orgulho de ser uma nativa dessa terra além-mar, porém, havia pesos que desejava descartar, e abandonar o berço quente e aconchegante foi o preço que encontrou.
De lá, guardava traumas. Do velho continente, adquiria conhecimento e experiências. O primeiro pouso foi em terras do seu falecido pai. Gostou de lá. O dinheiro da venda do apartamento ajudou nos custos dos cursos de línguas que sempre desejou fazer. Aprendeu inglês e francês, e de quebra espanhol. Italiano ainda era um desejo.
Quando estava mais confiante, disse adeus ao bacalhau e partiu rumo aos brioches. Em terras francesas, voltou a se entregar para a paixão.
No Brasil foram muitas. Uma até acabou em um quase casamento. O quase é devido ao fato de que não registraram aquela união de cinco anos no cartório. O transtorno apenas veio quando Manoela, querendo voltar a viver, decidiu vender o apartamento que comprou com o dinheiro herdado de seu pai.
Pelos olhos da lei brasileira, Manoela e Renato estavam vivendo uma união estável, portanto, metade do que era dela após terem ido morar juntos acabava sendo dele também. Manoela podia ter criado caso, só que desejava tanto se ver livre de tudo aquilo que vendeu o apartamento, o carro e fez a divisão. Pronto, primeiro empecilho solucionado.
O segundo. Estresse pós-traumático. O tratamento que fazia com o psiquiatra já surtia efeito. Se não fosse por ele, nunca teria passado em sua mente essa possibilidade de abandonar tudo e se aventurar pelo novo.
O trauma sofrido já estava controlado. E ela soube disso quando o avião decolou. A sensação de liberdade foi imediata. E agora, já se sentia integrada àqueles hábitos e costumes.
Acordou no mesmo horário como todos os dias e tomou o seu banho. Podia fazer o frio que fosse Manoela não dispensava os seus dois banhos por dia. Podemos dizer que não estava assim tão inserida em alguns hábitos. Apenas gostava de dizer que estava.
Colocou as suas calças jeans escuras e a blusa azul escura de botão. Seu uniforme de atendente de cafeteria – gostava de dizer que era barista –, e sobre ele um moletom cinza. Nos pés, os seus velhos e inseparáveis tênis all star preto.
Olhando para eles enquanto dava o nó no cadarço constatou que estava na hora de aposentá-los e comprar um novo. Retornou para o banheiro, escovou os dentes e amarrou os cabelos revoltados.
Manoela tinha os cabelos castanhos encaracolados até um pouco abaixo da altura dos ombros. Sua pele tem tom de dourado um pouco mais claro que os da sua mãe. Manoela é dona de olhos redondos e grandes, em um tom de castanho escuro. De noite podiam ser confundidos com pretos.
Torceu seu pequeno nariz de um lado para o outro encarando a sua imagem no espelho. Precisava fazer um corte e isso a chateava, não tinha paciência com idas em salões de beleza. Limitava-se a passar apenas um brilho nos lábios e um lápis preto nos olhos. Porém, durante a noite quando queria impressionar, sabia realçar todos os seus pontos fortes com uma boa maquiagem. Já para o trabalho de invisível no café, o brilho labial estava de bom tamanho.
Ajeitou a cama. Hábito adquirido muito jovem. Sua mãe detestava que as camas ficassem desarrumadas e por mais preguiça que Manoela pudesse sentir, sempre arrumava a cama e lavava a louça.
Pegou as chaves em cima da mesa e seu capacete, partindo para mais um dia de sua rotina. Desceu as escadas correndo, passando por uma moradora antiga daquele casarão transformado em apartamentos que ficava bem no coração daquela cidade minúscula – podemos dizer que estava mais para uma vila do que uma cidade. Era uma construção antiga. Cada habitação tinha uma configuração própria. A que Manoela ficou era como se fosse o sótão do lugar. Um espaço sem divisórias, exceto pelo banheiro. O restante era uma grande sala que ela delimitava o ambiente com os seus móveis.
— Bom dia, Sra. Smith.
— Bom dia, menina. Vejo que não está levando o seu guarda-chuva.
— Acha que pode chover? — Manoela olhou para a Sra. Smith, uma velha de olhar bondoso e intensos olhos azuis, com aquela preocupação fingida tão característica dos jovens que ainda tem muito o que aprender com a sabedoria intuitiva dessas almas antigas.
— Certamente que sim.
— Terei que me arriscar. Precisa que lhe traga algo?
— Vais pegar um resfriado. Mas ainda é jovem, diferente de mim...
— Passo no seu apartamento mais tarde, Sra. Smith!
Disse, continuando com a sua correria pelas escadas, evitando que o assunto com aquela senhora se prolongasse. A Sra. Smith é uma velha solitária e proprietária daquele imóvel. Manoela gostava de ficar conversando com ela. Sempre que podia aceitava tomar chá e escutar as lamúrias de uma velha esquecida pelos filhos. Porém, naquele horário não poderia lhe dar a devida atenção e não gostava de fazer aquilo. Saiu para a rua recebendo em seu rosto o vento gelado vindo do leste.
O céu estava em um tom de azul quase transparente. Nenhum sinal de que haveria chuva naquele dia. E então, nesse momento o sorriso voltou para os seus lábios pequenos. Montou em sua lambreta verde, e assim que prendeu o capacete em sua cabeça, partiu para o seu destino: Books&Coffee.
No trajeto, passou por vielas estreitas e revestidas por paralelepípedo. Em época de nevasca ficavam praticamente intransitáveis para a sua velha lambreta. Soube disso no primeiro tombo que levou. Saindo do centro antigo, indo em direção as colinas onde a universidade se encontrava, as ruas ficavam mais modernas e largas. Adeus às pedras escorregadias e bem-vindo ao asfalto de concreto. Apesar de o caminho ter sido todo refeito e modernizado durante os anos em que o progresso inevitável se apossou, as fachadas da velha universidade mantinham a sua arquitetura original datada do século 18. Apenas o seu interior e as novas construções se deixavam influenciar pelo século 21.
Manoela gostava dessa briga desarmônica do tempo. E também gostava do fato de seu trabalho ficar na parte antiga daquele campus.
Parou a lambreta no beco sem saída atrás do estabelecimento, tirando de qualquer jeito o capacete e entrou pela porta de aço destinada aos funcionários. Removeu o moletom aconchegante e esticou tentando desfazer os vincos que se formaram em sua camisa de trabalho. Guardou dentro do seu armário com o seu nome escrito em uma etiqueta de papel, pegando o último adereço de seu uniforme: o avental azul marinho com o nome do lugar, escrito em uma fonte muito elegante que lembravam aqueles traços escritos à mão por canetas de penas.
Olhou no espelho e pôde ver o estrago que aquele objeto obrigatório para a sua proteção fez em seus cabelos encaracolados. Bufou, soltando as amarras e refazendo o rabo de cavalo, dessa vez, mais firme. E assim adentrou o salão, bem atrás da vitrine repleta de gostosuras de vários tipos e gosto. O dono teve de se adaptar durante os anos para tentar agradar as várias invasões étnicas que aquela universidade passou a aceitar e também para não perder os seus clientes para a Starbucks mais próxima.
A fila para aquela satisfação matutina já estava longa, e sem ter tempo para socializar com a sua colega que já estava descabelada naquele horário da manhã, começou com seu atendimento usual. Cordial, polido e invisível de todos os dias.
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O Professor [Completo]
ChickLitStephen Weber é um prestigiado professor de literatura inglesa em uma universidade tradicionalista. Sua vida transcorre em um rotina nunca quebrada, até o dia em que uma jovem estrangeira surge e, com ela, decide abandonar seus padrões, fugir dos se...