- Capítulo 3 -
Ramón vira e ouvira. Ramón era um homem que sabia quando algo estava errado, não era por puro acaso que Diogo nascera tão inteligente. Ramón vira e ouvira tudo.
Era uma noite consumida pelas trevas, um Domingo silencioso naquele campo, contudo movimentado na cidade. Mesmo sem luzes a iluminarem os caminhos, o céu não brilhava com uma única estrela. Havia um casarão, propriedade de um casal da zona, que se dizia não pensar em futuros herdeiros nem agora, nem nunca. Era à porta desta habitação que Ramón se encontrava. Este vira. Sim, Ramón vira e ouvira. Ramón vira a mulher entrar nesta casa, Ramón ouvira o cumprimentar amoroso entre ambos.
Ele esperou, paciente, mas impaciente. Ramón queria saber, mas não queria. Queria saber se sim, mas desejava que não.
Ramón debruçou-se sobre si mesmo, enjoado e confuso. O que é que a mulher estava a fazer? O que pensava ela que fazia presente numa casa vazia com um homem casado? Sendo ela mesma casada? Ramón sabia a resposta, mas não queria saber.
Foi então que Ramón ouviu. Ouviu e depois viu. Ouviu o mexer de roupas através da janela semiaberta que estava à direita da porta, ouviu o respirar ofegante de duas pessoas comprometidas, ouviu um gemer agudo de alguém que amava. E ouviu o som de algo a partir-se. O som não era real, era apenas um entoar no seu próprio corpo e vinha de fundo, de bem fundo, da profundidade da sua alma e do seu coração.
Dedos gelados e imaginários contornaram-lhe a cara, indicando a humidade que lhe corria pela cara, nada vulgar. Ora um homem, ainda para mais um homem espanhol de raiz firme não chorava, muito menos por uma mulher. No entanto, Ramón chorava por Isabel. Chorava pela infidelidade da pessoa em quem mais confiava, chorava pelo seu próprio erro em confiar numa rameira e chorava pelo filho que deixara em casa.
E depois, como se não mais faltasse, Ramón viu. Ele mesmo não conseguia acreditar, precisava de ver. E como viu bem. Viu a amada, mulher pelas palavras do seu coração e não por Deus, que se cobria nos braços de outro homem, envolta no prazer que só devia ser privado ao marido.
Ramón caiu por terra. Sentou-se, coberto pela escuridão que a noite lhe oferecia como prémio de consolação. Ramón queria matá-la, matá-la e ao amante. Mas sabia que não conseguia. Por mais que não quisesse, Ramón amava Isabel e isso nunca iria mudar, nem mesmo que a sua honra estivesse em causa.
O espanhol não se lembra de chegar a casa. A dor profunda que lhe assaltava o peito impediu-o de prestar atenção ao filho que se retirara do seu quarto para ver quem chegava. Palavras simples de boas noites saíram-lhe da boca. Fechou-se no quarto.
Havia uma pequena pistola, a qual trouxera de Espanha quando na altura necessitava de proteger a família nas montanhas isoladas e visitadas por patifes, guardada numa caixa de couro velho debaixo da cama de casal que lhes pertencia a ambos.
Ramón colocou uma bala na arma de fogo e pousou-a na secretária. Pegou num papel e numa caneta e escreveu uma breve carta, uma carta de despedida.
Meu amor,
Primeiro quero que saibas o quanto te quero odiar. Odiar-te por me fazeres amar-te e odiar-te por não te conseguir odiar. A seguir quero dizer-te o quanto te amo. Sempre pensei que brilhasses demais para mim, que me cegasses se estivesse demasiado perto e quero que saibas que tinha razão. Mas não faz mal. Amei-te e sempre te amarei, infelizmente. Existe algo em ti que queima. Não sei se és o sol radioso ou apenas uma chama ardente, consumidora de tudo, mas tal como o calor que o sol ou a chama irradia, também a tua aquece os seres vivos, no entanto nunca ninguém poderá aproximar-se em excesso de ti. Costumava pensar que eras o sol que me iluminava todas as manhãs, mas demonstraste ser apenas fogo à espera de combustível.

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Terra maldita
RomantizmUma família está marcada por acontecimentos que determinaram a vida de três gerações de mulheres. Amaldiçoadas pelo destino e por si próprias, viveram tristemente. Mafalda é uma destas figuras e cabe-lhe cortar o ciclo vicioso desta família.