Cap. 1 - Luca

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O piso era de madeira, postas em pedaços longos e coloridos, alguns mais claros e outros mais escuros, mas todos envelhecidos pela ação do tempo.

Era divertido achar pequenas falhas nelas.

Pedaços faltando, uns fungos sorrateiros e inesperados ou pequenas manchas de sangue seco que nunca mais iriam soltar aquele pobre piso já morto.

Melhor ainda seria poder estudar as paredes, o revestimento de aparente, os papeis de parede estragados e a tinta manchada que começara a se soltar. Mas eu tinha que continuar de cabeça baixa, olhar para o chão e continuar a caminhar com se não houvesse nada ao meu redor.

Meu pai caminhava há alguns passos na minha frente, com sua cabeça e ombros erguidos, assim eu imaginava.

Era do feitio dele carregar o orgulho em seu corpo, fazendo da sua postura um meio de extravasa-lo, mesmo com suas pernas curtas e tronco levemente desproporcional. Sua forma de vestir ajudava nesse desejo - um terno azul escuro, a camisa social branca, a gravata escarlate e os sapatos pretos de couro.

Eu não conseguia vestir isso. A camisa social sob o colete azul claro, a gravata preta e a calça social já bastavam para me sufocar, fazendo com que meu tênis, cada vez mais deslocado, parecesse um pequeno oásis para mim.

Sorri quando finalmente vi o batente da porta e tentei me ajeitar um pouco sob aquelas roupas.

Meu pai parou em frente a uma escrivaninha antiga, larga e velha, que ficava em frente a única janela do cômodo, que ocupava quase toda a parede. Entre elas estava um homem de cabelo longo e loiro amarrado em um coque de samurai, vestindo uma simples camisa flanela e o que parecia uma castigada calça jeans.

Seu rosto era longo, como seu nariz, mas os olhos eram grandes e brilhantes, marcados por um verde escuro que lembrava grama. Sua sobrancelha esquerda era partida por uma tênue e pequena cicatriz. Seus ombros eram largos, o tronco comprido, como suas pernas. Se eu conseguisse chutar uma altura, diria que não passava dos 1,85 metros.

Me coloquei ao lado do meu pai e fiz uma reverencia ao mesmo tempo que ele.

Uma longa e má feita reverencia.

- Vejo que trouxe companhia hoje, Klaus. – O homem disse se sentando sobre sua escrivaninha – Uma opinião mais "juvenil" para a questão que lhe deixei da última vez?

- Sim, acredito que meu filho possa contribuir com suas opiniões "juvenis" para essa questão, já que, pelo que parece, é o que importa nessa nova era.

- Você acha? - O homem se levantou e foi até a janela com as mãos no bolso – Sempre achei que nós não tivéssemos uma era antiga ou nova. Os antigos acabam sempre determinando o curso que seguimos. A nova geração sempre fica para trás, agindo como um bando de fantoches que acham que possuem algum mínimo de poder – Ele fez uma pequena pausa e se virou para nós com um sorriso meio torto no rosto –. Ainda assim, não deixa de ser verdade que nessas últimas décadas os números da nossa espécie aumenta exponencialmente e não daqueles que desejamos, ao contrário... O que é curioso. – Sua voz parecia ganhar um tom brincalhão a cada apalavra que ele dizia - O que deixamos de fazer para que isso acontecesse? Por que agora?

Eu não imaginava como meu pai estava se segurando nesse momento, postando-se como inferior diante de alguém mais novo e visivelmente mais imaturo e despreparado que ele. Era um baita de um golpe em seu orgulho, um que, certamente, ele não esperava receber, não com todos esses anos sendo o principal conselheiro do regente.

Até que isso era divertido para assistir para mim, ver essa tão temida imagem dele ser desconstruída assim, de forma tão rápida e simples.

- Esse é um fenômeno para ser estudado, meu senhor, mas acredito que devemos nos ater ao que nos trouxe aqui hoje. – Meu pai disse pondo sua mão sobre meu ombro esquerdo.

O olhei pelo canto do olho e engoli seco, fechando e abrindo minhas mãos que começavam a suar de maneira descontrolada.

- Sobre a questão do... seu filho – me atrapalhei -, não acho que haveria uma... aceitação se um dia ele assumisse seu posto, como seria de direito. Nossa cultura aceita essa... organização política porque isso vai além desse achar superior ou porque vocês ditaram antes de todos que vocês reinariam e pronto... Não, é porque vocês são os primeiros e trazem isso consigo... Como uma sina? Ou, sei lá, como uma herança...?

"Seu filho, pelo que me foi dito, não tem isso e sem 'isso', ele jamais vai ganhar o respeito dos Quase-Puros, nem a lealdade da Terceira Linhagem ou dos Descendentes e muito menos a obediência dos Impuros... E a linhagem dos Primeiros ficaria como? Quebrada?"

O homem tirou o sorriso do rosto pela primeira vez e me encarou com aquele seus olhos que pareciam pequenos universos independentes de qualquer lei ou vontade externa, fazendo-me recuar um passo antes que eu mesmo percebesse que aquilo me assustara.

Era intimidante.

- É, tem isso. – Ele se sentou na sua cadeira – Digamos que eu errei, o que pode ser questionável, o ponto é que não há volta. Temos que trabalhar com que temos e agora. O nosso tempo de paz acabou no momento que deixamos os Impuros crescerem em numero. Precisamos nos reunir, no agrupar e aproveitarmos isso para tornar meu filho um regente "aceitável".

- Se me permiti a pergunta, sem o mínimo desejo de ofendê-lo, por que agora? O numero deles já aumenta há anos, não temos porque imaginar que logo agora teremos problemas com aquele grupo miserável.

Ele sorriu, brincando com algo que carregava em suas mãos enquanto deixava seus olhos descansarem sobre minha figura.

- Eu viajei muito nesses últimos anos e graças a isso acabei descobrindo algumas coisas bem desagradáveis para nós. Limito-me a dizer que agora eles reúnem suas crias ainda crianças para treina-las desde cedo com um único propósito... e bem, adivinha qual meu querido Aaron. – O homem voltou a sorrir – Não sei quanto tempo temos, mas quero fazer o mesmo que eles.

- Claro, meu regente, mas porque você crê que essa "juventude" irá abrir mão de sua liberdade para esse propósito? Não tratamos com crianças aqui.

- Porque, caso eles não estejam na nossa instituição até daqui há uns... Seis meses, eles todos irão ser morto. Sem exceção, sem jogos políticos, sem nada. Todos estarão aqui ou estarão mortos. Entendido?

Meu pai olhou de relance para mim e então voltou o olhar para o regente, como se aquilo fosse algo totalmente aceitável e compreensivo.

Então respondeu:

- Claro.   

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