Primavera

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Desperto com o barulho do impacto das gotas de chuva em minha janela. Levanto-me e sigo em direção à cozinha. Pego minha velha chaleira, encho-a de água e coloco no fogo para preparar meu chá. Enquanto espero admiro o vaso de rosas que jaziam sobre minha pequena e única mesa. Eram vermelhas como sangue e faziam um contraste não muito harmonioso com meu melancólico apartamento. Ainda sim, o ar depressivo não ofuscava a beleza das flores.

Desde minha origem as flores fazem parte do meu ser. Já muito novo admirava as rosas que minha mãe cultivava em seu pequeno jardim. Elas possuíam um encanto e uma delicadeza que me fascinavam. Jamais vi algo que possuísse beleza semelhante à das flores, e acredito realmente que não haja. Algo que exale perfume tão encantador, que possua cores tão intensas, realmente só cabe a elas ter.

Admirá-las é algo que sempre acalenta meu coração, é o mais próximo que posso, atualmente, chegar de sentir algo. Sinto que cada vez mais estou definhando, como uma rosa sem água. 

Desperto de meus devaneios ao ouvir o som estridente da chaleira, indicando que a água tinha fervido. Todos esses pensamentos fizeram-me lembrar de que começo hoje em meu novo emprego como jardineiro. Que cabeça a minha, devo estar ficando velho. Ando esquecendo muito facilmente das coisas, até coisas importantes como essa. Deve ser meu corpo me mandando sinais para finalmente desistir. Por enquanto vou me atentar a cumprir essa obrigação, talvez depois reserve um tempo pra ouvi-lo.

Visto meu sobre tudo preto para proteger-me da fria manhã. Ao abrir a porta, me deparo com a incessante chuva que cai dos céus de Londres. O céu era quase tão melancólico quanto meu ser. Apenas tranco a porta, abro meu guarda-chuva negro e sigo caminho dentre as ruas molhadas da cidade. No percurso passo por um pequeno parque. Ele me trás relances de minha infância, principalmente de minha mãe. Ela adorava esse parque, mesmo sendo muito pequeno e deveras sem graça. Ela era do tipo que conseguia ver beleza nas pequenas coisas, não entendia muito bem o porquê, acho que ela era muito otimista, ou apenas muito inocente. Bom agora não importa mais, sem ela aqui esse pequeno parque se tornou apenas mais uma lembrança triste para mim, de um passado que nunca voltará.

Durante o percurso me atento aos detalhas que me circundam. Para mim é quase um hobby observar as pessoas, mas discretamente é claro. Gosta de nomeá-las com características ou objetos que carregam, do qual me chama a atenção.

Meu primeiro alvo a ser observado foi um jovem, de uns 20 anos, que tocava um instrumento do qual não sabia o nome. A melodia era bonita e calma. Uns ou outros paravam para vê-lo tocar, vez ou outra jogavam-lhe moedas. De fato a melodia era muito bonita, o que me fez perceber que a chuva havia parado. Parecia até que ela havia parado só para não atrapalhá-lo tocar. Decidi nomeá-lo de "O Músico".

Mais à frente certo homem chamou minha atenção. Ele aparentava não ter mais de 28 anos, vestia-se elegantemente e dirigia um carro que deveria ter custado uma vida. De fato deveria ser muito rico. Carregava consigo também um bonito relógio de bolso de ouro, do qual parecia ter um grande apreço. Estacionou em frente ao banco do outro lado da rua que caminhava. Provavelmente sua missão ali era retirar uma enorme quantia de dinheiro. Vendo-se, pois levava consigo uma maleta para carregar as notas de uma conta maior ainda. Decidi chamá-lo de "Homem do Relógio de Ouro".

A diante ouço barulhos de ferro sendo fundido e pequenas faíscas saindo de dentro de um estabelecimento. Era uma ferraria. Quando passo em frente vejo lá dentro um rapaz solitário de uns 22 ou 23 anos moldando um pedaço de ferro. Pelo formato deduzi que seria uma roda. Ele era robusto e forte – devido ao trabalho braçal – e mesmo sendo novo, aparentava ter muita experiência em seu ofício. Decidi chamá-lo de "Ferreiro".

Quase no fim da rua quando estava prestes a virar na esquina, dentre as árvores avisto um homem pintando um quadro da paisagem à sua frente. Ele parecia mais inspirado a cada pincelada, fazendo as mesmas com maestria. Exalava certa jovialidade, mesmo sua aparência denunciando que beirava os 30. As árvores ao seu redor pareciam extremamente quietas, como se estivessem posando para a pintura. Decidi o nomear de "Pintor"

Quando finalmente virei à esquina encontrei-me em uma rua nobre, com suas casas enormes e bonitas, e com seus jardins mais belos ainda. Ah os jardins... Como gostaria de cuidar de todas aquelas belas flores. Espero que o jardim de que cuidarei seja igual ou tão bonito quanto esses. Pela breve informação que recebi, a casa que irei trabalhar pertence a um milionário dono de fábrica. Pelo que soube, a casa é habitada apenas por ele e sua única filha, pois a tuberculose tratou de levar sua esposa, assim como também levou minha mãe. 

Em frente à casa me deparo com um enorme portão de ferro. Antes que pudesse dar qualquer indicio de que estava ali, um homem – que deveria ser o mordomo da casa – permitiu-me entrar. Só quando adentrei tive idéia da dimensão daquele lugar. Realmente era uma construção gigantesca e proporcionalmente bela. 

- O senhor deve ser o jardineiro, eu presumo – disse o mordomo se dirigindo a mim repentinamente. 

- Sim. O senhor Sebastian contratou-me semana passada. Começo hoje.

Sem dizer nada ele se virou e fez um sinal com a mão para que o seguisse. Durante o percurso me pus a analisá-lo. Ele era alto e magro. Vestia-se elegantemente com roupas pretas, sempre com uma postura impecável e olhar calmo. Acho que vou nomeá-lo de... 

- Aqui estamos – Interrompeu-me antes de terminar minha análise. 

Assim que voltei meus olhos para o jardim, maravilhei-me. Ele era simplesmente magnífico, tão magnífico que parecia ter sido retirado diretamente do céu. Uma infinidade de rosas de vários tamanhos e cores jaziam no local, não só rosas como também narcisos, cravos, orquídeas, lírios e mais uma infinidade de flores que se fosse classificar levaria a tarde inteira. 

- As ferramentas estão no porão nos fundos do jardim. Quando terminar seu trabalho vá para casa e volte só depois de amanhã ao mesmo horário – Disse e imediatamente se retirou. 

Adentrei o jardim e comecei a analisar as flores, tocando suas pétalas que faziam leves carícias em meus dedos. Mal poderia esperar para começar, na realidade nem sabia por onde começar. Tratei de, pelo menos inicialmente, pegar as ferramentas no porão para iniciara meu trabalho. Dirigi-me em aos fundos do jardim, porém, no meio do caminho algo me chamou a atenção. Em um canto reservado do jardim, havia uma árvore de médio porte no auge de sua primavera, esbanjando suas lindas e delicadas flores que forravam o chão com suas pétalas. Abaixo dela havia uma mesinha branca acompanhada de duas cadeiras no mesmo estilo, dando um ar gracioso ao local. Aquele lugar estava perceptivelmente mais iluminado do que o restante do jardim. Parecia até que as nuvens se abriram apenas sobre aquele ponto para o sol agraciá-lo com seus raios solares. A luz fazia um contraste belíssimo com as flores, sendo a mesa iluminada apenas pela luz que passava pelas frestas das mesmas. Porém, nada disso me chamou tanto a atenção quanto a figura sentada pacificamente em uma das cadeiras.

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