Prólogo

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  O despertador foi ativado pontualmente às dez horas, tocando uma canção antiga de rock bem agitada. Talvez fosse tarde para alguém acordar em uma quinta-feira, mas era feriado. Dia da Independência do Brasil. Alice desligou o aparelho e permaneceu deitada, encarando o teto ainda sonolenta.

  — De forma alguma — o padrasto dissera — Não me importo com suas pinturas nas paredes, mas no teto não. Você tem que respirar, isso não te sufoca?

  A garota detestava admitir quando o padrasto tinha razão. O teto sem pinturas deixava-a afastada da poluição visual do ambiente, mas não tirava a sensação de prisão que a invadia a todo momento ali. Na verdade, Alice sentia-se uma prisioneira na casa inteira. Com ou sem spray nas paredes. Ela sentia-se livre ao grafitá-las. Era um curto período de liberdade que proporcionava paz, mas que logo acabava. Ou talvez sua intenção apenas fosse se sufocar ainda mais.

  Alice tateou a cama à sua direita e pegou o celular. Havia duas mensagens.

  Arthur, 5:28
  "Querida, ocorreram imprevistos e não chegarei em casa a tempo para seu aniversário. Sinto muito. Beijos."

  Leo, 9:37
  "Bom dia, Ally! Você quer vir aqui em casa? Nós podemos ir na pracinha e depois almoçar. Minha mãe vai fazer lasanha."

  Arthur é o padrasto de Alice. Quando soube que sua mãe estava grávida, o pai da garota fugiu e nunca mais teve contato com Patricia Saint-Marie. Pouco tempo depois, ainda grávida da menina, Patricia apaixonou-se por Arthur, um colega da faculdade de Medicina que alimentava uma paixão secreta pela mulher há algum tempo. Ambos se casaram e, três meses após a cerimônia, Alice nasceu.

  Ela gostava do padrasto, mas após a morte de Patricia o mesmo nunca ficava em casa, sempre viajava a trabalho ou tinha reuniões urgentes nas quais sua presença era indispensável. A moça entendia como implicância, mas sentia falta da companhia de Arthur, pois passava a maior parte do tempo sozinha, apesar de sentir que ele ainda a culpava por terem perdido Patricia.

  A garota levantou-se e entrou no banheiro de seu quarto para tomar um banho, despiu-se e entrou no box. Dois dias depois seria seu décimo sexto aniversário. Não queria nenhuma festa e fizera questão de não colocar a data de aniversário verdadeira em suas redes sociais.   Alice pensava o contrário do que aproximadamente 99,9% das pessoas no mundo acha. Sob sua perspectiva, quanto mais aniversários alguém faz, menos tempo de vida tem. Isso transforma festas de aniversário em comemorações para a morte, mesmo que as pessoas insistam que um ano não faz diferença. Mas ninguém comemora só uma vez na vida. Ela preferia fazer parte dos 0.1% do que ser uma entre 99,9%. Não era do seu feitio comemorar vidas perdidas. Ela e Arthur bem sabiam.

  Secou-se, enrolou-se na toalha e demorou-se frente ao espelho embaçado, observando vapor d'água se condensar em gotículas, que escorriam em direção à pia de mármore branco. Ela sorriu e deslizou o dedo indicador pela superfície molhada, desenhando um trevo de quatro folhas.

  A adolescente escovou os dentes e seguiu para o quarto, onde vestiu uma blusa rosa com mangas, calça jeans e calçou suas botas de montaria, antes de ir ao haras para andar em sua égua preferida, Nacional. Sempre o fazia nos aniversários de morte de sua mãe.

  Era o sexto deles.

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