Capítulo 9 - Trauma: Parte 1

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  Desde que ingressou na Mística, Alice recebeu informações suficientes para explodir o cérebro de qualquer pessoa. Presenciou situações outrora inimagináveis, descobriu-se traída e, apesar de tudo que sofreu,  todas as ameaças e acusações do padrasto, preocupava-a saber que àquela hora o homem poderia ter enviado mensagens e, sem resposta – não tivera coragem suficiente para perguntar se havia algum roteador ali – acionado a polícia. Começara a gostar da nova escola, e não queria levá-la a ter problemas judiciais.

  “Talvez ele fique feliz em não me ter por perto”, pensou, “talvez meu quarto fique para a namoradinha dele... Arthur era tão bom para mim, eu sou um monstro para ele desde aquele dia. Minha mãe estaria viva se eu não tivesse nascido, droga!”.

  Cinco dias antes de seu décimo aniversário, Alice implorou à mãe que fizessem um piquenique no haras que frequentavam, antes de Leo, seu único amigo na época, visitá-la como prometera.

  As boas lembranças eram nítidas em sua mente: Patricia galopando, o corpo em sincronia com sua égua preferida, Capitu, tão encantadora quanto a musa casmurra. Dizem que animais partilham características dos donos, e aí há uma verdade. Cabelos cor-de-mel como os da filha foram trançados, caindo-lhe em cascata pelas omoplatas. A mulher ria, dando meia-volta para recuperar o lenço de cabelo que era levado pelo vento. Guiaram os animais em busca do tecido azul. A pista de corrida e obstáculos respondia ao momento com um silêncio profundo, não obstante o som dos cascos na terra e relinchos ecoados da baia, onde Musgo, o garanhão frísio*, escoiceava em feno e madeira, chamando atenção para o filhote que nascia.

  A mãe gritou por Saul, presidente do haras, e a lembrança cedeu lugar a ambas já na residência, o vulto, as palavras e a menina que cantarolava, horas antes, feliz por sentar no banco do passageiro – uma grande conquista para uma garota de dez anos – ateava fogo na sombra dançante, sem ao menos perceber o que acontecia ou que era guiada ao escritório da mãe.

  Uma voz fraca disse que a culpa não era dela.

  Mas não acreditou. E a vida do potrinho não foi celebrada.

  As chamas estalavam, divertindo-se às custas de Alice, vestidas de laranja, vermelho e amarelo, línguas demoníacas que esticavam-se e encolhiam-se, enegrecendo tudo que lhes era tocado.

  Mas não acreditou. E a vida do potrinho não foi celebrada.

  Gritos e sirenes adentraram o local, atraídos pela fumaça e uma equipe de resgate arrancou a menina da escada na qual Patricia sentava-se com ela para conversarem sobre o dia.

  Arthur fitava-a com ódio após a explicação dos bombeiros, que extinguiram as chamas e encontraram os ossos carbonizados jazendo nas ruínas onde encontravam-se manuscritos, a mulher, móveis e a máquina de escrever. Só esta última escapou ilesa, bem como alguns anéis, o par de brincos e o lenço, que foi encontrado repousando na mesa da cozinha.

  Lúcia e Leo levaram-na à delegacia mais próxima. Apesar de dizer tudo o que aconteceu, foi levada a um hospital com brancas paredes de gritos, onde conversou com uma médica – ou médico, não lembrava-se – e desde então era obrigada a engolir balas com gostos horríveis que faziam-na dormir a maior parte do tempo. Teve aulas em casa, morou com Leo – que parecia ser o único capaz de acalmá-la – e logo foi acomodada no quarto do amigo-irmão. O padrasto não a queria em casa, nem após a reforma.

  Um limiar obrigou-o a tê-la sob tutela, e pouco depois a moça voltou para a casa. Arthur não se dera o trabalho de pintar as paredes enegrecidas, que tempos depois foram personalizadas à la Saint-Marie.

  – E o que o vulto repetia? – a senhora perguntou.

  Não foi preciso ponderar ou mesmo pensar. Estava na ponta da língua, olhos e ouvidos.

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