Capítulo

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Marin estava deitada no sofá da sala. A televisão estava ligada à sua frente e jorrava suas imagens no rosto da garota. Ela estava muito preocupada para prestar atenção naquelas coisas bobas.

Sua mãe ainda estava no telefone no outro cômodo. Quando a garota se concentrava conseguia entreouvir alguns pedaços do que a mulher mais velha dizia.

"Sim, que bom que ele está bem..."

"Vou conversar com ela sobre..."

"... não costuma fazer essas coisas"

"Eu vou pagar pelo médico, não precisa se preocupar"

A menina aninhada no sofá se encolhia cada vez mais a cada palavra que ouvia vagamente por trás da grossa parede que a separava de sua mãe.

Ainda estavam a culpando, era evidente.

Um nó se formou em sua garganta. Ela sabia que não era sua culpa. Marin não havia feito nada! Ainda assim, de tantos sermões e discursos que já havia ouvido em um intervalo de tempo tão minúsculo, era impossível que não se sentisse culpada pelo acontecimento.

Pensou que talvez fosse mesmo sua culpa. Talvez ela pudesse ter ajudado, mas ela não fez nada. Sim, com certeza as pessoas estavam certas. Era sua culpa.

"Não, como você poderia ter previsto que aquilo iria acontecer?"

Distanciou aqueles pensamentos que a estavam fazendo tão mal. A parte de trás da sua cabeça já começava a doer. Se continuasse pensando daquela forma aquela pequena dor provavelmente pioraria.

Olhou para baixo, onde um grupo de formigas havia chamado sua atenção. Elas ziguezagueavam pelo chão, como se estivessem tontas ou não soubessem seu rumo. A menina ficou as observando por um bom tempo. Era mais fácil direcionar toda sua atenção para as formigas e deixar de lado a vida real.

Elas ficaram fazendo curvas pelo piso da sala por um bom tempo antes de mergulharem por baixo de uma estante ao lado da porta fechada.

No exato momento que elas desapareceram de vista, a porta se abriu.

Sua mãe estava parada lá, encostada no batente da porta, com uma expressão sombria no rosto. Anos de convivência e pedaços da conversa que ela tivera com o irmão eram o suficiente para que Marin concluísse que a mulher diante dela estava brava. Muito brava.

- Mãe... - a garota tentou, mas foi silenciada por um gesto de mão de sua mãe.

Ela permaneceu lá, estática, enquanto a mais velha esfregava as têmporas, tentando se acalmar.

- Por que você fez isso, Marin? - aquela pergunta foi como um soco no estômago.

A menina já estava se preparando para ver sua mãe furiosa, mas, de alguma forma, aquilo era muito pior. Seu tom de voz estava cheio de decepção, como se tivesse passado a vida inteira enganada sobre sua filha, ou como se a garota à sua frente fosse uma estranha, intrusa.

Para Marin, aquilo era pior que raiva.

- Não fui eu, mãe, eu te juro.

Mais uma vez, ela foi silenciada com um gesto com a mão. Alguns momentos desconfortáveis de silêncio se passaram antes de sua mãe soltar um suspiro sofrido.

- Vai dormir, Marin.

- Mas, mãe...

- Vai dormir - ela repetiu, com o tom de voz mais firme dessa vez.

A garota não via opção além de obedecer, então o fez. Subiu rapidamente as escadas e entrou em seu quarto, fechando a porta às suas costas.

Se jogou na cama e ficou lá, encarando o teto. Conseguia ver uma trilha de formigas, saindo de um lugar e indo para outro lugar qualquer.

A quantidade desses pequenos bichinhos que Marin via pela casa estava começando a ficar preocupante. Ela decidiu que pediria para sua mãe contratar algum exterminador quando se acalmasse, mas não tinha ânimo nenhum para lidar com aquilo naquele momento.

Fechou os olhos e tentou dormir, como sua mãe ordenara, mas o sono não vinha. Estava muito preocupada com seu primo.

Além disso, estava frustada e ainda tinha várias perguntas na cabeça.

Por que ele tinha colocado a culpa nela daquela forma? Era muito injusto, e não fazia sentido nenhum. Claro, eles nunca se gostaram muito, mas ele estava indo longe demais.

Será que ele realmente achava que ela que tinha feito aquilo?

"Quem garante que você não fez mesmo?"

Não! Ela não podia pensar assim! Marin tinha certeza que não tivera culpa de nada. Não podia começar a duvidar de si mesmo, não naquele momento.

Continuou boa parte da noite com esses pensamentos, essas dúvidas, essa preocupação, interrompidos apenas por eventuais cochilos curtos. Já eram 3:17 quando ela decidiu que não valia a pena tentar dormir.

Levantou de sua cama e seguiu em direção à cozinha. Decidiu que, como não conseguia cair no sono, ela podia comer alguma coisa e esquecer, por um momento, do que a preocupava.

Desceu as escadas no escuro, com cuidado para não tropeçar e nem fazer muito barulho, para não acabar acordando sua mãe. O chão estava agradavelmente gelado aos seus pés descalços.

Antes de abandonar o último degrau e pisar no chão da sala, ela se reteu.

Sob a fraca luz, que vinha dos postes da rua, ela conseguia ver que o chão estava se mexendo.

Voltou um degrau, assustada. Pensou consigo mesma que podia ser uma ilusão de ótica, causada pela falta de luz, mas ela achou improvável. O chão se movimentava como se estivesse vivo.

Com as mãos trêmulas, ela tateou a parede em busca do interruptor que ficava do lado da escada. O encontrou no meio da escuridão, mas hesitou antes de ascender as luzes. Quando o fez, apertando todos os botões do interruptor de uma só vez, não conseguiu conter um gritinho.

A visão que foi iluminada repentinamente pelas luzes era... bizarra, para se dizer o mínimo.

O chão inteiro, cada centímetro, cada milímetro, estava coberto. Por formigas.

Aqueles pequenos insetos cobriam o chão da sala como um carpete vivo. Seus movimentos pareciam vibrações no chão. Ondulações em um mar marrom, prontas para engolir quem se atrevesse a pisar lá.

Mas isso só durou alguns segundos. Quando se depararam com a luz forte que agora banhava a sala, elas começaram a se dispersar. Marin só conseguia observar chocada enquanto elas desapareciam embaixo de seus esconderijos.

Na mesma hora que a última formiga se ocultava, debaixo do sofá, as luzes do quarto de sua mãe se acendiam.

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