As luzes difusas da TV iluminavam a escada onde Marin estava sentada. As vozes dos atores eram incompreensíveis para a garota, apenas um eco no fundo de sua mente.
Lágrimas deixavam um rastro em suas bochechas enquanto caiam descontroladamente.
Se fosse há algumas semanas antes ela não teria se preocupado tanto. Na verdade, ela estaria aliviada, afinal, o médico havia dito que sua mãe estava fora de perigo, que logo voltaria pra casa, se é que aquele lugar poderia ser chamado dessa forma.
Mas Marin sabia. Ela sabe que aquilo não havia sido um acidente doméstico comum. Sabia, também, que sua mãe nunca estaria "fora de perigo". Não enquanto morassem naquele lugar.
Mais lágrimas cairam no chão. Apesar da preocupação pelo estado de sua mãe, não era por ela que a garota estava chorando. Aquelas eram lágrimas de medo.Sua mãe estava segura naquela noite, no hospital, porém Marin teria que enfrentar mais uma noite de inferno. Isso quase a fez desejar que fosse ela a cair da escada.
Junto com o medo, também sentia culpa. Não podia deixar de se sentir dessa forma.
Ela tinha plena consciência de que nada do que acontecera no início de tudo era sua culpa. Como poderia ser? Há tantos anos atrás... Marin nem estava viva ainda, não poderia ter feito nada. Mesmo assim, alimentava a sensação de que nada estaria tão ruim se não fosse por ela. Se ela não fosse tão intrometida, se tivesse mais paciência, ela e sua mãe teriam tido mais tempo. Ninguém estaria no hospital naquela noite.
Sua tia era a única mulher que a impedia de fugir imediatamente daquele lugar. Era impossível sair pela porta da frente sem que a mulher notasse e Marin já havia aceitado o fato de que o máximo que conseguiria explicando a situação seria ser internada em um hospital psiquiátrico.
"Mesmo um hospício seria melhor do que essa casa"
Sua tia começou a rir de alguma piada que algum dos personagens na televisão disse. Sua risada soava como uma janela enferrujada se abrindo e era seguida pelo coro de risadas vindas da televisão.
Todas elas pareciam cruéis e distorcidas, ecoando na cabeça de Marin como se zombassem dela. Como se ela fosse a piada.
Sua cabeça começou a girar, então tudo, repentinamente, parou. O ambiente voltou a ficar parado e as risadas foram substituídas pelo todas silêncio.
Não, não silêncio. Todo o ruído tinha sido substituído por um som de chiado, e as cores que iluminavam seus olhos haviam sido substituídas por uma tremeluzente luz branca.
Sua mente instantaneamente se congelou pelo medo, mas seu corpo foi movido pela curiosidade.Lentamente se levantou do degrau onde estava sentada e inclinou seu corpo para ver o que estava acontecendo na sala. Todos os pelos de seu corpo se arrepiaram. Até suas palmas da mão suavam. Algo lhe dizia que alguma coisa horrível iria acontecer.
Sua tia estava ao lado da televisão, mexendo na antena. A luz oscilante iluminava suas feições frustadas. Marin sentia q algo estava prestes a acontecer, um sentimento como um frio na barriga, enquanto observava sem se mexer. Sentia que seus pés estavam colados.
Sua tia continuava mexendo na antena, cada vez mais ferozmente. Até que, subitamente, a tela estática da televisão voltou a mostrar os personagens com que a tia estava tão acostumada.
Marin soltou todo o ar que estava segurando em seu pulmão, aliviada.
"Você está começando a ficar paranóica, não foi nada de mais".
Antes que pudesse se sentar novamente na escada, porém, a televisão apagou definitivamente. Tudo que havia sido deixado como iluminação era a fraca luz vinda dos postes da rua. Todo resto era puro breu.
Marin não ousou gritar de surpresa, nem mesmo chamar por sua tia. Ela sentia como se o chão tivesse acabado de ser arrancado de seus pés.
O tempo também parecia ter parado. Minutos, horas, dias, anos, tudo era o mesmo. Tudo era apenas escuridão e um silêncio tão profundo que quase se tornava ruidoso. Nem os sons de sua própria respiração eram audíveis. Nem seus próprios pensamentos. Só o medo.
Após alguns minutos, que também poderiam ser anos, o silêncio foi quebrado.
Marin sentiu como se gelo atravessasse todas as suas veias ao ouvi-los. Os passos. Logo acima de sua cabeça, no andar de cima.
Eram leves, mas, naquele silêncio, seus sons pareciam ter sido amplificados. Marin conseguia saber exatamente de onde vinham.
Os passos pareciam perdidos, andando em círculos pelos cômodos do andar de cima. A garota podia ouvir enquanto percorriam os corredores e entravam nos cômodos. O quarto de sua mãe. O banheiro. Seu quarto.Uma gota se chocou com o chão ruidosamente. Só nesse momento Marin percebeu que estava chorando.
Acima de sua cabeça, os passos pararam ao ouvir o som da lágrimas, mas apenas por um instante. Logo continuavam a explorar o andar de cima, visitando todos os cômodos novamente, enquanto mais lágrimas molhavam o chão.A menina já estava tremendo dos pés à cabeça quando os passos mudaram de direção. Seu coração acelerou mais do que achou que era possível quando percebeu que estavam descendo a escada. Estavam indo em sua direção.
Eram lentos, mas se aproximavam rapidamente. Marin se sentia inútil por não poder fazer nada para para-los. Nem ao menos conseguia se mover. A única coisa que pôde fazer foi fechar os olhos. Quase naquele mesmo instante, os passos começaram a vir de algum lugar logo às suas costas. Então ao seu lado.A presença era tão forte que a garota conseguia saber seus movimentos mesmo sem que precisasse vê-la.
Seu coração doía em seu peito enquanto sentia uma respiração em seu ombro e olhos perfurando sua cabeça.A Presença parecia satisfeita com o medo, parecia estar gostando das lágrimas que caiam cada vez mais dos olhos da menina. Marin não conseguia ver, mas sentia isso.
Quanto mais a Presença ficava lá, parada ao seu lado, alternando entre o lado esquerdo e o direito, mais Marin se sentia tentada a abrir os olhos. O som de cada passo era um convite, que ficava cada vez mais gritante."Abra os olhos. Abra os olhos. Abra os olhos."
Marin não sabia porque não abria. Queria abrir, ver quem estava mexendo com sua cabeça. Ver o rosto dela. Daquilo. Mas era como se algo na sua cabeça falasse que não, como uma mensagem.
Marin gostaria de acreditar que era o instinto. Era a sanidade negando que tudo era real. Era sua mente lhe dando dicas.
"Você só pode acreditar no que vê, então não abra os olhos. Enquanto você não a vê, ela não é real. Não abra os olhos".
Mas então a Presença se cansou. Ela parou à frente da garota, ainda congelada e cega por medo e instinto. Marin podia sentir a diferença no ar.
Mesmo estando próxima ao ponto de ser possível que fosse sentida, a Presença se aproximou cada vez mais. Tudo parecia andar em câmera lenta enquanto aquilo se aproximava, levantando a mão na direção do rosto da garota.Mesmo antes dos dedos tocarem a pele da menina ela já podia senti-los, como pequenas adagas perfurando sua pele.
Antes da dor se tornar mais profunda, a Presença desapareceu. Ao mesmo tempo o fim de um coro de risadas pôde ser ouvido.
Ainda hesitante, Marin abriu os olhos. Não havia nada de diferente. Tudo parecia perfeitamente normal.
Varreu os olhos pela sala mais uma vez. Sua tia ainda estava sentada no sofá, com a cabeça caída para o lado. Marin achou inacreditável que ela tivesse adormecido bem naquele momento.
Mas então olhou para a silhueta adormecida de sua tia mais uma vez e um frio percorreu sua espinha.
Não sabia exatamente o que, mas havia algo muito errado naquela cena como, se alguma coisa não estivesse no lugar.
A garota se aproximou hesitantemente do corpo inerte de sua tia. Quanto mais se aproximava da poltrona onde a mulher repousava, maior ficava o frio em sua barriga. Subconscientemente ela sabia que alguma coisa horrível aconteceria. Um pressentimento. Porém, mesmo sabendo que a ideia mais inteligente fosse sair de dentro da casa o mais rápido possível, ela sabia que o não importava para onde fosse, ou o que falaria para se explicar, ela acabaria voltando eventualmente.
Por isso continuou se aproximando de sua tia, pronta para sacudi-la fora do sono. De uma forma ou de outra não passaria mais uma noite em claro por medo de fechar os olhos.
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Lar
HorrorMarin começava a pensar que havia algo de errado com ela. A casa era perfeita, não havia nada que fosse ruim. Nada que explicasse essa aversão que a garota cultivava desde o momento que entrou pela porta da frente...