Tia Tatá

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   Ao entrar em casa, vi minha mãe em meu sofá. Ela assistia atenta ao noticiário, nem me ouvira chegar.
   -Mãe?
   -Tatá! Ah, filha.
   -O que você veio fazer aqui?
   -Você não respondeu minhas mensagens. Eu vim ver se você estava bem.
   -Estou ótima.
   Ela suspirou, me analisando.
   -O que foi isso no seu braço?
   -Nada!
   -Talita, o que houve?
   -Caí, mãe. Coisa boba. Tudo bem com você e o papai?
   -Tudo. Ainda não acreditei na sua desculpa-Respirei fundo.
   -E o Diego?
   -Vai bem. Me disse que está tentando convencer sua cunhada a aumentar a família. Você podia aparecer vez ou outra.
   -Podia, mãe. Mas esse clima de família perfeita e feliz me enjoa. Parece que só eu dei errado, já viu?
   -Isso não é verdade. Você está ótima agora.
   -Os anos passaram e vocês esqueceram o que houve comigo? Podia ser uma atriz conhecida pelo meu trabalho... Mas não. Ensino o abecedário para um monte de criança que nem finge interesse.
   -Você nunca vai superar o que houve, Tatá? Porque a gente não tenta conversar sobre isso?
   -Porque eu não quero. Sempre que você vem, insiste nessa merda desse assunto. Eu não quero e nunca vou falar sobre isso, ok?
   Ela suspirou frustrada.
   -Fiz um almoço para você. Está na cozinha, tá? Vê se liga.
   -Mãe.
   -Sim?
   -Fica. Almoça comigo. Vamos conversar um pouco? Sobre outras coisas. Me fala da Escola de Gente.
   Sorrindo levemente, minha mãe me acompanhou até a cozinha. Almoçamos juntas e tivemos um bom início de tarde.
  
🌼

    Evitando uma nova ressaca, fiquei em casa sábado à noite. Chamei Bruna, Neymar e alguns mais amigos íntimos para ficarmos só conversando e jogando, de bobeira. Passei a noite grudada em minha amiga. Detesto demais brigar com ela.
    Domingo também sosseguei. Não podia chegar virada do avesso no primeiro dia pós férias de meio de ano. A diretora já não é muito minha fã, imagina se atrapalho assim.
    Então, segunda, acordei com o infeliz do despertador às pontuais cinco horas da manhã.  Levantei, puta da vida, com a hora. Ninguém nem consegue abrir os olhos essa hora.
    Joguei minhas pernas para fora da cama, levantei e fui direto para um banho.  Depois, calça jeans e uma blusa azul clarinho. Nada novo nem nada que uso realmente no meu dia a dia. Maquiagem bem leve, ajeitei meu cabelo em cachos perfeitos e um sapato com pouca elevação. Ao me olhar no espelho, ri ironicamente. Minha figura, sempre tão preta e carregada, estava quase angelical.
    Organizei minha bolsa e pastas, conferindo o planejamento de aula. Comi uma besteira qualquer de café da manhã e  fui para meu carro.
    Minha primeira aula do dia já era com minha turma de teatro das crianças um pouco maiores. Agitados com a volta das aulas, demoraram a sentarem quietos nas cadeiras do auditório. Quando conquistei a atenção deles de volta, apresentei o projeto de final de ano: um Shakespeare adaptado para a faixa etária deles, uns 8, 9 anos.
    Com minhas memórias daquela turma específicamente, fiz umas divisões de personagem. Retomei treinos de voz e pedi uma leitura dramatizada do texto. Apesar de tudo, morro de orgulho quando vejo um aluno realmente interessado ou evoluindo na timidez com minhas aulas. Afinal, foi na idade deles que adquiri a paixão. Me vejo em algumas daquelas meninas empolgadas.

🌼

    Minha grade de segunda tinha mais dois horários de teatro, e um de gramática, a última aula do dia. Ao chegar para a aula de português, suspirei. Acho a coisa mais difícil do mundo ser responsável pela alfabetização de crianças tão pequenas. Retomei as letras vistas antes das férias e os encontros delas em sílabas. Nisso, tive que ensinar tudo de novo para alguns. Com essa revisão, acabei não tendo tempo de ver tudo que estava no planejamento.
    Ouvi o sinal tocar 11:30. Ajudei os pequenos a arrumar o material e guardei seus livros nas prateleiras, enquanto os mais carinhosos me ajudavam com essa tarefa. Passando os olhos na sala, conferindo se estava tudo certo, encontrei o menininho que encontrei no mercado sábado. Sorri, instantaneamente. Não tinha visto ele ali ainda, viva minha desatenção.
    Abri a porta da sala e recebi pais dos pequenos. De um em um, fui os entregando aos pais ou responsáveis. Por final, logo aquele pequeno ficou na sala. Me aproximei sorrindo e sentei em uma cadeira ao seu lado.
    -João?
    -Sim.
    -Quem vem te buscar hoje, meu amor?
    -Mamãe. Ela que vem na maioria das vezes.
    -Ah, é? Então vou esperar aqui com você. Quer brincar de alguma coisa?
    -Quero!
    O deixei escolher um jogo e fiquei ali com ele naquelas pequenas carteiras. Do nada, me assustei com alguém falando o nome dele alto. Me surpreendi ao ver o cara que tinha me ajudado aquelas duas benditas vezes.
    -João! Desculpa o atraso, amor? Mamãe perdeu a hora e me pediu para vir em cima da hora.
    -Tudo bem. Fiquei com a tia Tatá.
    O homem me olhou e riu, de forma sarcástica. Cruzei os braços.
    -João, a Miá está lá no meu carro nos esperando. Fica lá me esperando? Já vou. Hoje você vai ficar no escritório comigo, tá?
    -Tá bom!
    O cara conduziu o menino até a porta e virou para mim.
    -Não acredito que você é professora do João. Imagina se Alice descobre onde te conheci.
    -Você não me conhece, querido-Ele sorriu.
    -Até que hoje está mesmo parecendo um anjo. Fica mais bonita de roupa clara.
    -Você é pai do João?
    -Vai ter que me conhecer para descobrir, querida.
    -Sei que Alice é a mãe.
    -E como você pode ter certeza? Não me deixa quebrar essa casca grossa aí.
    -Você é tão incoveniente. Não sabe nada de mim.
    -Eu saberia muito...
    -Seu filho é tão bonzinho para ter um pai tão escroto. E essa Miá? Está te esperando. Anda, vaza da minha sala.
    -Vamos nos ver mais?
    -Espero ansiosamente que não.
    -Até mais, anjo.
    Mostrei o dedo para ele, fechando a porta da sala. Arrumei minhas coisas, preparei tudo para o dia seguinte e fui para meu carro.
    No trânsito, me peguei pensando no tal Fábio, pai de João. Ele sempre tão irritante, coitado daquela criança. Mudei minha linha de pensamento e fui descontar isso na academia, bem melhor.
   
   
   

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