A FOME

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                              CAPÍTULO X

                               *

Um carreiro coberto por musgo e relva nos cantos dos muros, restando apenas uma pequena área de chão batido, aproximadamente vinte metros até um pequeno portão de tábuas. Uma tramela improvisada era o único obstáculo que um ladrão encontraria, caso tivesse algum interesse em nossos pertences, o que seria pouco provável, eu olhava para o papel sobrescrito torcendo para estar enganado quanto ao endereço, mas não havia engano algum, era ali mesmo. Ao abrir a pequena tramela e empurrar, o minúsculo e apodrecido portão arrastou-se no chão evidenciando ainda mais as marcas na terra preta. Eu segurava com as duas mãos uma trouxa de roupas sobre as costas, ao pôr os pés no terreno percebi que aquela área fora supostamente um banhado, pois a cada passo o solo parecia trepidar.

O lugar era quase amaldiçoado, frio e mofado, os dois cômodos pareciam abandonados há anos, a pintura interna de toda a casa estava descascando devido a vàrias camadas de tinta e ao tempo que se passou após a última reforma por assim dizer. Rachaduras nos cantos das paredes deixavam frestas que aumentavam ainda mais a sensação de frio extremo em dias de chuva.

Ricardo carregava contente pelas ruas do bairro em direção à nova casa um colchão de solteiro sem capa e dobrado ao meio, era presente de um amigo que fizera, ao chegar pegou uma velha porta que estava guardada dentro da casa e a colocou deitada no chão, servindo assim para colocar o colchão em cima e livrá-lo da friagem e umidade do chão.

O proprietário da casa emprestou-me um acolchoado que dobrado era colocado diretamente sobre algumas folhas de papelão no piso. A noite foi chegando e com ela a temperatura despencou rapidamente, eu conversava animadamente com Ricardo e já passava das dez horas da noite quando decidimos tentar dormir um pouco, mas fui imediatamente advertido:

"O colchão é meu, caro amigo, portanto você tem um problema ainda maior."

Disse Ricardo com ar de deboche.

"Pode até ser que o colchão seja seu, só que tem um porém, a única coberta que tem na casa é minha e o acolchoado foi emprestado a mim, se você não pode dividir eu também não posso." Senti-me vingado, mas com dó do amigo da onça que provavelmente passaria frio naquela noite.

Antes de deitar, percebi que Ricardo tinha um plano para passar a noite, ele começou a vestir calças e blusas uma por cima da outra a fim de suportar a queda brusca de temperatura, e eu vendo que não era má ideia fiz o mesmo.

Altas horas da madrugada, Ricardo não tinha pegado no sono e tremia como uma vara verde. Ao acordar senti pena do amigo e discretamente levantei e coloquei parte do cobertor sobre Ricardo, que fingiu não ver nada, mas a partir dai dormiu rapidamente.

Os dias foram passando devagar e eu sentia terríveis dores nas costas, costelas e pescoço, cada noite era um castigo interminável, mas Gis ainda era mais que um bom motivo para prosseguir sem medo, mesmo nos momentos mais tenebrosos. Pensar em minha amada me dava forças e ainda mais certeza de que valeria a pena, mesmo sofrendo compreendia que tudo faria parte de um minucioso aprendizado.

O cardápio que o pouco dinheiro podia proporcionar era em geral quase sempre o mesmo, isso por causa de uma promoção da panificadora do bairro, compravam-se dez pães francês e ganhava cem gramas de mortadela, no décimo dia o apetite já não era mais o mesmo, quando finalmente o fim de semana chegou eu estava preocupado, o dinheiro acabou e restara apenas dois vales-transporte para o retorno ao trabalho. Pouco mais de nove horas da manha, comi um pão dormido que restara da noite anterior, cada mordida enchia a boca de água lembrando-me das refeições que nossa mãe preparava, sabia que depois desse pão a próxima refeição só Deus saberia quando, seria minha pior provação depois que sai da casa de nossos pais.

Ao cair da noite a fome não me deixava pensar em nada além de comida, tomar água já não enganava mais meu estômago, que constantemente roncava ruidoso, durante a madrugada sentia terríveis dores na barriga, parecia que meu corpo estava alimentando-se de si mesmo, a dor de cabeça nunca foi tão forte como estava naquele momento. Ricardo não parecia diferente, estava amarelo e muito debilitado após aquele jejum forçado.

Pela manha fui à panificadora, a menos de uma quadra, e troquei um vale-transporte por pães e mortadela, nos passos de volta para casa tinha pressa, ao chegar coloquei os pães em cima de um velho fogão, grande, amarelo e esmaltado. Chamei Ricardo e nos ajoelhamos e agradecemos a Deus pelo alimento que em sua infinita misericórdia nos proporcionou, eu em lágrimas não deixei de pedir ao Senhor para que não nos provasse novamente com a fome, pois a terrível experiência jamais sairia de minha memória. Ao terminarmos as preces, combinamos o seguinte: cada um comeria dois pães e deixaríamos os outros para a noite, foi impossível cumprir o acordo, em minutos somente a sacola estava sobre o velho fogão.

Sentei-me em um canto e em silêncio olhava a sacola vazia lembrando que já tive a oportunidade de estar nos melhores restaurantes de nossa cidade natal, como convidado é claro, mas já tive. Lembrava-me das panelas de nossa mãe sempre fumegando na hora das refeições, no entanto reconhecia que jamais vira antes um Buffet tão saboroso e bonito quanto esse em que os pães que comemos tão vorazmente, e que no dia anterior demonstrava estar enjoado do cardápio tão pobre. Lembrei-me também das palavras de nosso pai, que nos repreendia quando não queríamos comer legumes ainda criança:

"Espero que não aconteça meu filho, porém se acontecer, na hora do apuro você vai descobrir que a fome torna-se o tempero, e tudo passa a ter um sabor muito especial."

Pensei muito em Deus naquela manhã e me perguntei reiteradas vezes sobre o propósito de tudo aquilo, as lágrimas rolavam sem controle até que restaram apenas soluços em meu peito destroçado, deitei um pouco e em minutos adormeci. Ao acordar horas depois eu estava só e a sacola permanecia no mesmo lugar, a chuva caia forte e ruidosa do lado de fora, estranhamente a água começou a brotar do chão e lentamente cobriu todo o piso, não havia muito que salvar então o único trabalho foi levantar as trouxas e caixas de roupas e aguardar até o fim da tempestade. No domingo Elizeu visitou-me, e sabendo da situação trouxe-me algum dinheiro emprestado, assim guardei a ficha de vale-transporte restante para não me esquecer do que passei.

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⏰ Última atualização: Oct 21, 2017 ⏰

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