INJUSTO

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CAPÍTULO VIII

*

Meu nome ecoou entre as grades e logo o carcereiro estava com a chave enfiada no cadeado, abriu a cela e aguardei enquanto ele a trancava novamente, Liso dormia profundamente e não esperava nada de um dia de visitas a não ser o lanche que os outros compartilhavam.

Caminhei lentamente sempre a um passo a frente do educador que me guiou para uma sala pequena e igual a do interrogatório, as dores tinham passado, mas algumas marcas rochas ainda estavam na pele, sentado aguardei que meu pai ou minha mãe abrissem a porta e por um breve devaneio imaginei Gisele entrando, mas sacudi a cabeça espantando as ideias estapafúrdias.

O trinco moveu-se para baixo e a porta abriu alguns centímetros permanecendo assim, alguém terminava as últimas palavras de uma conversa e logo ela se abriu por completo, quem entrou não se parecia em nada com quem eu esperava, a mulher estava séria e sentou-se na cadeira a minha frente, na mesa colocou delicadamente uma pasta com alguns papéis dentro, ela aparentava seus quarenta e cinco anos, mas sua maquiagem fazia parecer bem mais jovem.

"Pelo menos essa não vai me cobrir de porrada..." Pensei eu.

"Como você está?" Perguntou fitando fixamente em meus olhos, aguardando a resposta.

"Estou bem, quase não sinto mais dores, tenho algumas marcas, mas devem sumir em breve."

"Marcas de que?" Perguntou ela realmente parecendo preocupada com meu bem estar, senti confiança e contei a ela como foi o interrogatório.

"Não se preocupe isso não vai mais acontecer!" Disse já com outra fisionomia.

"Finalmente alguém preocupado comigo, uma estranha, mas bem melhor do que ninguém," pensei tentando manter viva a esperança de sair logo daquele lugar.

Ela mandou ficar em pé e que erguesse a camisa mostrando, com uma caneta ergueu o outro lado expondo-me um pouco mais, eu se quer preocupei-me em saber qual era a patente ou profissão da senhora, apenas sentei após o rápido exame e ouvi a notícia mais esperada desde que fora aprendido.

"Estivemos investigando seu depoimento e confirmamos tudo o que consta nos autos, falamos com a família onde você estava pouco antes do acontecido e confirmaram sua visita. Agora vem a parte boa, assim que o juiz assinar a papelada você poderá voltar para casa."

"Senhora, pode me disser quanto tempo isso demora?"

"Provavelmente essa semana você estará livre!"

Sentia uma mistura de felicidade e indignação, feliz porque sabia que sairia em breve e indignado por estar trancafiado nesse lugar.

Há poucas coisas no mundo que nos faz desejar vingança, estou convencido de que a mais grave delas é a injustiça, Hernandes ainda estaria em meu lugar e pagaria por seus crimes.

Com tempo de sobra e nada além de um livro, você começa a pensar em si mesmo e a esmiuçar cada dia e cada palavra que já ouviu, um verdadeiro filme passa em sua mente e vez ou outra seu cérebro simplesmente acorda, como uma bombinha que explode ao seu lado enquanto dorme, primeiro um susto, depois você quer encontrar o responsável e puni-lo. As duvidas que perduravam, agora já não existiam mais. Recordando de Hernandes passo a passo, era claro que ele era o responsável por tudo aquilo, mas como provar isso se não havia evidencias além das palavras de um quase confesso.

Eu nunca senti desejo de pegar um homem pelo pescoço e espancá-lo, ao me lembrar do rapaz implorando pela vida e sabendo que Hernandes não teve clemência, minha raiva assumia o controle.

"Gis! Ele disse que vai ficar com Gis, será que não a fará mal?" Respirei levemente aliviado quando lembrei que Vera era mais que uma guardiã, mas no fundo eu sabia que se Gisele fosse enganada, ela achando estar fazendo o certo enganaria à Vera também e estaria correndo risco sozinha.

Meu maxilar estava dolorido e minha cabeça literalmente fervia, eu não era um criminoso, mas se fosse solto naquele dia teria facilmente me tornado um assassino, minha raiva e frustração por não ter juntado as peças antes só me faziam ver tudo com mais clareza, eu nunca perdi um amigo, na verdade ele nunca esteve lá.

Desde minha infância eu jamais me julguei capaz de matar um homem, sempre achei que perdoar era mais saudável e mais fácil quando alguém, um pai de família perdia a cabeça e fazia algo assim eu não compreendia como isso tinha acabado tragicamente.

De repente meu corpo todo arrepiou-se, minha mente parou, como um computador que precisa de alguns instantes para reiniciar seu sistema depois de algum tempo desligado, imóvel, meu coração estava estranhamente pesado, pude sentir e literalmente ouvir a morte.

"Foi por pouco!" Disse ela. A noite era sua, mas um inocente ocupou seu lugar na sepultura.

Finalmente compreendi o que o debochado Hernandes quis dizer, enquanto tripudiava de minha sorte no dia em que fui preso.

"Não pode ser ele realmente, não tem boa índole e seus meios de conseguir o que quer são incomuns, mas matar alguém? Será?"

Eu não queria acreditar, aquilo era algo grande demais para minha realidade, se fosse verdade Gis estaria realmente em risco.

Deitado em minha cela ouvia Liso dormir tranquilamente, enquanto me ocupava com meu universo em ruínas, mesmo que eu não ficasse com Gisele gostaria apenas de me certificar de que sua vida seria regida por si mesma, sem enganação e sem mentiras.

Olhando para os desenhos na parede achei que seria o momento certo de deixar algo significativo, uma marca, um registro de que estive por ali, uma pequena pedra com uma ponta era a única ferramenta disponível, comecei sem saber o que faria na pintura frágil que soltava ao mais leve toque, meia hora depois pude contemplar minha arte. Em minha vida quase tudo tem um significado, representa alguma coisa que se foi ou que ainda pode vir, tornando-me de certa forma previsível para quem me conhece de perto.

Depois que a tinta cinza foi removida, o nome "HERNANDES" surgiu em branco, como uma escultura feita de um grande bloco de mármore que segundo o artista diz.

"Ela sempre esteve aqui."

Sentia-me bem com esse raciocínio, sabia que aquele lugar esperava por Hernandes.

Ali naquela madrugada decidi que voltaria a procurá-la novamente.

Três dias depois finalmente fui libertado, nosso pai fora assinar por mim e levou-me direto a um cartório onde emancipou- me, tudo em silêncio quase total, eu não tinha mesmo muito que dizer, trancafiado naquele lugar você não vive, quando se está em liberdade depois de um longo período tudo parece novidade: um passarinho voando, uma carro que passa e até mesmo as curvas de uma mulher qualquer lhe parece coisa nova, sua atenção é roubada por coisas que passariam totalmente despercebidas.

Aquele dia nosso pai claramente tinha dúvidas sobre minha posição, seria seu filho um assassino a sangue frio e covarde ou uma testemunha mal compreendida como eu alegava?   

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