O corpo estendido no chão

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Bate a porta atrás de si. A cabeça cheia de pensamentos e coisas a fazer, não podia-se dizer onde estava, em todos os lugares e ao mesmo tempo, em lugar nenhum. Anda até o elevador olhando a mensagem no celular. Não percebe que seus vizinhos conversam sobre o clima ou o feriado próximo. Tira o olho da tela apenas para olhar no espelho, para ajeitar o cabelo e a roupa, linda por assim dizer. Vira e mexe, ouve como o dia estava lindo de céu azul. Lembra que não olhou para o céu hoje.

Acordou já com o pé no chuveiro, pensando na mochila escola a fazer, o lanche a colocar e os estudantes a arrumar. O banho rápido servia apenas para acordar, porque logo seriam os filhos a usarem o banheiro. "Cadê ela?", pensa com o atraso da diarista e olha pela janela, realmente sem ver.

O marido tomava café, enquanto vestia as crianças e as coloca prontas na mesa. Para ela, faltava apenas o salto e a maquiagem faria no ônibus, que lotava pelo caminho.

O elevador deixa todos no térreo e cada um vai para o seu lado na calçada, não sem antes desejarem bom dia para os vizinhos. Apenas sorri, caso contasse a alguém aquele não seria um bom dia e também, começara mal.

A mente não para com o que havia para resolver. A reunião marcada para as oito horas, decidiria a sua promoção. Merecida por tanto trabalho que tivera por anos.

O curso de inglês dos filhos marcava um passeio para o final de semana próximo, fora o aniversario do menino chegando. O marido estava mais frio, estranho e quando pára para pensar não queria que fosse traição. As pessoas que demitiria nesse dia, tinham famílias igual a ela, mas não houve jeito já que o salário do gerente aumentaria.

Sente o sol esquentar as bochechas e tira os olhos do celular, que trazia notícias de sua vida. No grupo da famílias, as mensagens eram ignoradas de segunda a sexta, afinal teria tempo para eles no domingo. No grupo da escola dos filhos, eram tantas atividades que se perdia. Como conseguem fazer isso no ano inteiro? E mais dinheiro, dinheiro...

No grupo das amigas, as mesmas mágoas e conversas. Uma havia se separado há pouco e as outras sempre marcavam para se encontrarem, infelizmente não poderia ir. O trabalho consumia todo o seu tempo.

Em seu grupo de trabalho, todos os tipos de resultados e problemas a resolver. A especulação de quem poderia ser demitido e a produtividade do mês, a reunião das oito...

Distraída, com o celular, atravessa a rua para o ponto de ônibus, almeja chegar na hora, almeja a promoção.

Não viu quando um carro, vem a toda velocidade e quem atravessa com ela dá um pulo para trás. Não vê a placa e nem o motorista, quando esse não reduz a velocidade. O povo grita. "Tenho mais o que fazer", pensa ao chegar no ponto e percebe que seu celular havia caído.

Levanta a cabeça pela primeira vez naquela manhã, olha ao redor e vê uma aglomeração e o trânsito parado. Volta no caminho que fez em busca do aparelho e para diante do corpo estendido no chão.

Perder o ar ao perceber o celular a centímetros da mão do cadáver e se aproxima a ponto de chorar. De pronto, reconhece os cabelos espalhados na faixa de pedestres e o sapato de bico fino que a mulher usava, aquele que calçou com pressa. Leva mão á boca e não contem as lágrimas que inundam os olhos. Sente o tapa que o corpo recebe e vê os outros usarem seus celulares para chamarem a emergência.

Em cada rosto, vê uma vida, uma resposta, uma responsabilidade. A diferença é que a atropelada foi ela. Cada pessoa ali, vendo o seu corpo expressava cada sentimento que nunca ousara experimentar. Compaixão, pesar, nojo pelo sangue que lhe saia da cabeça e pena, por ser jovem. Acima de tudo, tempo para ajudar. Isso ela nunca teve.

Ninguém ali sabia que tinha filhos, marido, trabalho. Olhavam o ser humano, coisa que nunca olhou. A vida rígida por pressão externa nunca a deixou olhar para o que importava. Trabalhava porque precisava, casara por conveniências e os filhos... por eles chora. A eles, ama com todo o corpo, mesmo que esse não lhe pertença mais. E por um estúpido hábito, perdeu a vida.

Começa a sentir a dor na lateral do corpo, onde o carro lhe atingiu. A dor não cabeça não havia chegado ainda, mas os pensamentos não paravam.

Na mente os filhos, se tivesse os levado ao parque mais vezes; o trabalho, a promoção que tanto trabalhou iria para outra pessoa; a casa, que não sabia como ficaria e o marido, será mesmo que estava a traindo? A mente ainda não descansava, porém junto a isso havia o desespero, o pavor de não saber o que fazer. Quando viva, tudo era planejado, porém agora não sabia para onde seguir.

Não havia mais no que pensar, brigar, debater. Não havia o que fazer porque seu corpo estava lá, estendido no chão, enquanto a multidão se dispersava a chegada da ambulância. Cada uma daquelas pessoas seguiram com a sua vida, continuariam a fazer o que saíram para fazer e sua morte seria mais um assunto, no meio de tantos outros.

Pare, pense e reflita! O que mais impota para você? Qual é a sua prioridade?

Quando a morte bate a porta, nada se há para fazer. Então olhe ao redor, responda as pessoas e seja gentil.

Priorize o mais importante e não se esqueça dele.

Até o próximo....

(Música: De frente pro crime, de João Bosco)

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