Sorria

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Naquele dia ela acordou com o pé esquerdo. Ao levantar, percebeu que havia perdido a hora e ao correr topou o dedinho no pé da cama. Foi ao banheiro e viu que não teria como ajeitar o cabelo, iria com ele preso mesmo. Ao chegar na cozinha foi recebida com reclamações de sua mãe, que tinha sempre a mesma lista: roupas sujas, louça na pia e o almoço por fazer.

Revirou os olhos e se deu bom dia mentalmente, porque não o recebeu de fato. Viu seu pai reclamando da conta de luz e do chuveiro quente. Desejou correr, se pudesse já o teria feito, mas o salário não lhe dava essa oportunidade.

Voltou ao quarto e lembrou que a blusa do dia não estava passada e não poderia ir com a saia escolhida. Revirou os olhos mais uma vez e escolheu o traje mais adequado e respirou embaixo do chuveiro. Relaxou tanto que ao chegar no ponto percebeu que havia perdido o ônibus, tendo que pegar o próximo mais cheio e seguir o trajeto em pé.

Os planos de se maquiar no caminho foi abandonado ao ser apertada por uma senhora um pouco acima do peso que insistia em chegar ao final do coletivo. Ainda lhe fez o favor de levantar a bolsa na altura das cabeças das pessoas passando-a pelo penteado quase perfeito da moça. O que lhe restou foi passar a mão para amenizar o dano. Pena que o quadril não poderia ser levantado, ou melhor, que bom!

Desceu do ônibus após se apertar e saiu alisando a roupa amassada, o dedinho doía dentro do salto mas os passos teriam que serem rápidos. Esbaforida chegou ao local causando o espanto em sua colga de trabalho, que lhe desejou bom dia, o que quase a fez grunhir.

Finalmente sorriu e sentou, mas logo suspirou de novo. A mesa com o computador que demorava para ligar, estava cheia de artigos a serem digitados no site da revista e publicados há uma hora atras.

- Ah não – tinha planejado chegar cedo, publicar após redigir os artigos assim que chegasse. A bagunça lhe dizia o contrario. Teve apenas que suspirar.

Ligou o computador e antes que a tela acendesse viu o seu reflexo nela. O susto da colega foi justificado e olhar esbugalhado não combinava com visual. Passou a mão pelo cabelo envergonhada, apoiou o rosto na mão e pegou o primeiro texto a ser digitado. Sem perder tempo abriu a aba do site da revista e a outra com o seu e-mail. Depois o editor de textos e começou. Seus dedos flutuavam pelo teclado, já fazendo a correção necessária.

- Está bonita hoje. - o susto que levou com a voz masculina quase a fez cair da cadeira e o estômago afundar. "Ah não, ele não!" pensou em como se comportar.

- Bom dia – falou sem graça para dono do artigo que digitava.

- Está gostando do que lê? - os olhos escuros penetravam nos dela, menos mal, porque se fosse no cabelo... - Sem o lápis seus olhos ficam lindos.

- Eu... ah... obrigada. - encontrou a voz sumida e esqueceu da falta da maquiagem. - Sua escrita melhora a cada artigo. - sentiu a falta de confiança que uma produção lhe daria naquele momento.

- Você quer conversar, Gabi?

- Estou sem tempo, Otávio. Vou terminar de digitar e a gente se encontra no refeitório. - "Se eu conseguir parar para almoçar."

- Certo. Te espero lá. E também suas impressões sobre o meu artigo. As de verdade, Gabi. A verdade! - falou apontando para ela e saiu lhe dando a visão das costas largas e o bumbum empinado, por conta do crossfit.

Ela suspirou do lábios tremerem. Os planos para sexta a noite poderiam ter tido o seu fim ali. Mais um balde de água fria no seu dia. Mais um chute para fora do gol. Continuou o seu trabalho de forma mecânica, corrigindo verbetes e conjunções para que melhor se adequassem. A música tocava no escritório amplo, a claridade do dia entrava pela janela limpa. Ela se mantinha concentrada.

Após duas horas e quatro artigos, publicou e resolveu ler o de seu amigo, por quem tinha uma queda secreta.

- Melhore o seu dia com um sorriso – ao ler o título, sorriu. Leu atentamente o conteúdo e se encantou, a revista on-line destinada ao publico jovem, tratava de assuntos básicos, como politica, economia e informação, tambem continha artigos motivacionais, como os de Otavio. Ao ler, sentiu que era para ela e tambem lhe deu esperança.

Pegou mais quatro artigos e continuou o seu trabalho. Depois leu e publicou. Ligou para os patrocinadores para saber se mudariam a imagem da divulgação. Atendeu uma pessoa que queria escrever para a revista e outra que queria falar com Otávio.

Decidiu levantar para esticar as pernas, ao se espreguiçar estalou a coluna e no primeiro passo, o salto enrolou nos fios, fazendo-a cair no chão. A preocupação dos colegas era evidente, mas braços fortes a levantaram e ao dizer que estava bem percebeu os olhos quentes e o braço ainda em sua cintura.

- Você está bem mesmo? - Otavio olhava profundo, desnudando suas defesas.

- Não estou no meu melhor dia. - ajeitou o cabelo e se afastou do corpo do colega, olhando para o chão encabulada.

Deveria voltar para casa, acordar de novo e começar o dia com pé direito e rescrever cada momento constrangedor. Chegou ao banheiro e suspirou pela milésima vez naquele dia. Tinha que controlar os batimentos cardíacos antes que o coração voasse pela boca.

Ouviu a porta do banheiro abrir e fechar, mas não parou o que estava fazendo para olhar quem entrava. Levou um susto ao ver Otávio pelo reflexo do espelho, não conseguiu fechar a torneira, fazendo a pia inundar. Ele fechou, ainda atrás dela e começou a massagem seus ombros.

- "Melhore o seu dia com um sorriso..." - os movimentos aliviavam a tensão e a vergonha do dia. - "Se topou o dedo no armário, solte a frustração com um palavrão, depois sorria..." - ela fechou os olhos, ouvindo as palavras que havia lido. - "...Se pegou o ônibus cheio, sinta-se abraçado e sorria, pelo menos conheceu o calor humano. Se não deu para se arrumar, sorria! Um dia para experimentar um novo estilo..." - sentiu o seu corpo ser virado e abriu os olhos. - "...Se está solteiro, com todos os amigos casando ou casados, sorria! Você ainda tem a oportunidade de testar vários beijos, até achar o seu preferido...".

Ele parou de falar e aproximou seu rosto do dela devagar, dando a chance de reclamar, o que não aconteceu. Levou a mão até a sua nuca e a beijou leve e carinhoso. O corpo relaxou com o balsamo, levantou os braços e alcançou os ombros dele se entregando ao beijo. Que fez o seu corpo se aquecer.

- "Melhore o dia com um sorriso, nele pode estar a luz que você precisa." - dizendo a última frase do artigo, ela sorriu e voltou a beijar Otávio, testando o seu beijo. Talvez aquele seja o seu favorito.

Melhore o seu dia com um sorriso, não há melhor do que a companhia de uma pessoa que ri se si mesma.

Até o próximo...

(Música Sorria - Djavan)

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