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A GAROTA com rosto de querubim e a velha esguia estavam sentadas em poltronas confortáveis, lado a lado, de frente a mesa do velho. A garota levou um susto quando o velho dirigiu-se a ela.

— Vick?

— Hã? — ela estava com a cabeça distante, talvez nas nuvens, talvez acima delas. Será que a garota estava pensando na maldição da viúva entalada?

— É desta forma que gosta de ser chamada, certo? Vick?

Ela afirmou sem dizer nada, apenas acenando com a cabeça, seus pequenos olhos amendoados aterrorizados.

— Você prestou atenção em tudo o que eu disse?

Outro aceno de cabeça, calada.

Uma ruga de preocupação surgira na testa da velha que estava sentada na poltrona ao lado da garota.

— Pois bem — O velho soltou um suspiro pesado, seus óculos de grau perfeitamente posicionados na ponta do nariz — A senhorita Carmem vai se retirar da sala agora, para que eu e você possamos conversar em particular. Se estiver de acordo vou lhe fazer algumas perguntas. Elas podem parecer invasivas, de qualquer forma, só conseguirei traçar seu quadro psicológico se me respondê-las com total franqueza.

— Não tenho certeza se quero fazer isso.

— Por quê? — interrogou o velho.

— Quem garante que tudo o que eu te dizer não chegará aos ouvidos da minha tia? — a garota fitou a velha que estava sentada ao lado dela.

— Confie em mim, criança — o velho disse, sorrindo — Tudo o que for dito aqui, permanecerá entre a gente — ele garantiu, ardiloso.

Antes da velha esguia se levantar da poltrona, ela fitou a garota de maneira amável, demonstrando entre elas um elo dos mais fortes. Foi nesse instante que o velho cochichou algo curioso no ouvido da velha. É muito provável que a garota não o ouviu, mas eu sim, pois sou capaz de escutar todos os sussurros, até mesmo aqueles que vêm de lugares muito distantes, de outros planos. O velho cochichou: "Vou resolver essa situação, fique em paz, sua pombinha está em boas mãos".

Nesse dia, essa garota (a "pombinha"), fora a última paciente agendada a ser atendida. Estou pensando cá com meus fios e minhas tomadas: Se eu não estiver equivocado (eu raramente erro quando se trata de números), a consulta dessa garota de rosto de querubim tornou-se a 667ª realizada neste recinto. Como eu sei disso? Quem sou eu? Ah! Eu sou aquilo que alguns humanos chamam de "Voz Fantasma", ou, "A Voz Que Não Ouvimos". Existem várias vozes iguais a mim, aprisionadas por ai. No caso eu sou as torres de livros acadêmicos em capa dura, empilhados de forma irregular no chão da sala de consulta do velho. Eu sou a ventilação e a iluminação inadequada, a mobília empoeirada, as rachaduras no forro, o mau cheiro que invade a fresta da porta. Eu sou as teias assustadoras com aranhas medonhas nas paredes mofadas (um mofo verde-musgo, que se parece com obras de arte gótica). Eu sou os duplicadores de tomadas enredados à fiação exposta. Eu sou o piso em taco de madeira, úmido e encardido. Eu sou as migalhas de alimentos e as bitucas de cigarro, espalhadas por todos os cantos. Eu sou este santuário inteiramente arruinado que combina perfeitamente com meu atual proprietário.

Muito prazer, eu sou este casarão.

Os boatos a meu respeito são deploráveis. As crianças me olham receosas, e me observam apenas a distância. No primeiro dia do ano (quando os pequenos se vestem de branco e circulam pelas ruas da cidade com sacolas de supermercado desejando aos moradores "bom princípio de ano novo" em troca de doces) eu sou a única residência da rua a não ser visitada.

Amaldiçoado, macabro e assombrado são algumas características atribuídas a mim pela maioria das crianças que vive nos bairros arredores. Essas crianças nem imaginam, mas todas as vezes que elas dizem tais ofensas parte da pintura da minha parede descasca mais depressa, pois essa é a maneira que nós choramos. Essa é a maneira que as construções de cimento e pedra demonstram tristeza.

As Vozes Que Não Ouvimos (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora